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Vou tentar trabalhar as diferenças que eu percebo como luterano com os demais evangélicos. Esse texto tem suscitado muitas perguntas a mim nas redes sociais, por parte de evangélicos das mais variadas vertentes, então tive que fazer uma longa introdução, que ficou até maior que a apresentação das diferenças em si, explicando como funciona o Luteranismo, para que as pessoas entendam o contexto luterano e assim tirem suas conclusões com mais conhecimento sobre nós.

O texto ficou longo, você vai demorar mais de 10 minutos se for ler tudo, dependendo do seu interesse pelo tema. Mas, para facilitar a leitura, coloquei subtítulos para te ajudar a ler só o que for de seu interesse, para não precisar ler o textão todo, se não estiver a fim.

Este não é um artigo acadêmico, eu não estou falando em nome de nenhuma denominação luterana, nem tentando fechar o assunto, apenas escrevi como um luterano que fez parte do movimento evangelical e por isso trabalho as diferenças que mais sou questionado, que é a soteriologia, ou seja, a doutrina a respeito da salvação.

Se quiser ler algo mais curto, escrevi também um texto com o pensamento de Lutero sobre a predestinação, que nós, luteranos, concordamos e seguimos o que ele apresentou. É só clicar no título em azul abaixo:

Lutero e a Predestinação

Se quiser conhecer outras diferenças entre luteranos e demais evangélicos, tem um texto do professor Paul W. Buss aqui no Blog, explicando as diferenças em cristologia, sacramentos e outros temas, não é um artigo com todas as diferenças, acho que isso daria um livro com milhares de páginas, mas tem diferenças fundamentais entre luteranos, reformados e demais evangélicos. O link para este artigo com outras diferenças entre luteranos e demais evangélicos estará no final do texto, antes da bibliografia.

A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO

Para nós, a doutrina da justificação é o tema central, e cremos ser a justificação somente pela fé em Jesus Cristo. Na minha página, a Lutero Reflexivo, tenho muitos problemas com calvinistas e arminianos por causa dessa questão da justificação, principalmente entre alguns calvinistas, que até creem na justificação pela fé, mas costumam rejeitar que seja somente pela fé, dizendo que se não houver tal pensamento político, tal pensamento teológico, ser adepto de tal vertente cristã, ter tal postura cultural, enfim, o que faz um “cristão de verdade”, para eles, são as obras. Se a pessoa não apresenta essas exigências políticas, culturais, teológicas, etc, a pessoa nunca foi justificada, ou ela pode perder a justificação, dependendo da vertente que a pessoa adota, se calvinista ou arminiana. Esse tema sempre causa conflitos em conversas virtuais e reais, quando excluo totalmente as obras do processo de justificação e qualquer outro processo vertical diante de Deus, quando digo que não há a necessidade nenhuma de obras para ser aceito por Deus. Mesmo assim, acho pertinente deixar claro que pensar de maneira diferente nesta questão não significa para mim que você não está justificado, não é cristão de verdade e não seja aceito por Deus, porque essa fé que nos justifica diante de Deus é a (confiança) em Jesus, não é (adesão intelectual) na doutrina da justificação somente pela fé; afinal, não é por obras (risos)..

Por isso a maioria dos luteranos não julga os cristãos de outras vertentes por causa de uma confessionalidade diferente, eu não vou fazer esse julgamento no meu texto também. Vou apenas apresentar as diferenças. Jesus não permitiu que eu julgue as pessoas sobre a salvação delas (Mt 7.1). Isso pertence a Ele. Então não se sinta sendo “condenado” por mim com o meu texto se você pensa diferente. Estou apenas apresentando minhas percepções como luterano referente aos entendimentos diferentes sobre esse assunto dos demais evangélicos.

OUTRAS DIFERENÇAS

Existem outras diferenças entre luteranos e o movimento evangelical, e mesmo internamente entre luteranos no Brasil na teologia e na cultura eclesiástica, há diferenças na forma de cultuar, no entendimento sobre sociedade e política, na Cristologia, na forma de interpretar a Bíblia, nas formas de organização eclesiástica, muitas outras diferenças que podem ser trabalhadas, mas quase que a totalidade das perguntas que recebo são sobre a questão da predestinação, então vou trabalhar sobre esse assunto aqui. Talvez com o tempo eu passe minhas impressões sobre outros assuntos culturais ou teológicos, vamos ver…

UMA RÁPIDA AUTOBIOGRAFIA

Fazendo uma rápida autobiografia, eu nasci em lar pentecostal, passei a infância e a adolescência como pentecostal e peguei o advento do neopentecostalismo no Brasil também, na transição entre a década de 90 e os anos 2000. No meio da década de 2000 eu passei um período em crise de fé e andei por diversas vertentes e religiões diferentes, sem ter uma confessionalidade determinada. Nessa época andei entre “judeus messiânicos”, “neo-ortodoxos”, “teístas abertos”, e também procurei conhecer religiões como Mormonismo, Testemunhas de Jeová, Seicho No Ie, Igreja Messiânica Mundial, Perfect Liberty, Kardecismo, enfim, estava bem confuso, passei uns 3 anos procurando tudo até sossegar no Calvinismo, na metade da década dos anos 2000.

Passei a segunda metade desta década como calvinista da ala “puritana”, mas muitas coisas dessa vertente já não entravam na minha cabeça, não as conseguia ver como bíblicas. Chegou um momento que eu me percebi como tendo me tornado uma pessoa muito legalista, fundamentalista, o amor para com Deus parecia um caso de auto-afirmação e o amor pelo próximo se tornou desnecessário na minha teologia pessoal, até mesmo nulo em muitos casos, o importante era a “glória de Deus”; a “teologia da glória” era a forma como eu interpretava o cristianismo.

Aquilo passou a me incomodar e angustiar muito, eu me sentia um “psicopata da fé”, estava me sentindo muito mal com aquela teologia, então passei a olhar com uma quantidade enorme de ressalvas ao que eu acreditava, a Teologia que eu abraçava; já não conseguia concordar com muito do que ela ensinava, mas ainda assim eu a considerava a mais próxima da Bíblia disponível e eu convivia com ela, mesmo tendo muitos questionamentos tanto das premissas, como do conteúdo, quanto também do efeito que a Teologia reformada (calvinista-puritana, neste caso) que eu abraçava fazia em mim e em outras pessoas que se comportavam mal como eu me confortava.

Mais para frente vou citar um trecho em que Lutero comenta sua frustração com o termo “justiça de Deus”, que lhe mostrava um Deus cheio de raiva e vontade de punir as pessoas, como ele ficou cheio de ódio por esse deus que gosta de punir as pessoas, mas depois descobriu que Deus não era o que sua mente dizia para ele, mas que Deus é amor e ama a todos. Tive uma experiência bem parecida, por isso me identifico bastante com Lutero e gosto de ler suas obras, porque aprendo muito como reconhecer o amor de Deus, depois de ter passado anos achando que a justiça de Deus estava na punição, hoje vejo que ela está em Cristo e seu perdão e sua misericórdia.

Veja bem, estou falando de minha experiência própria, não estou generalizando contra os calvinistas, nem contra os pentecostais. Eu não pretendo aqui atacar as teologias que eu já fui adepto, como o calvinismo, o pentecostalismo, ou o arminianismo, apenas citei os problemas pessoais que eu tive com elas e ainda assim espero evitar conflitos desnecessários, só quero clarificar que, dentro de uma perspectiva subjetiva, eu levantei certos questionamentos que me fizeram concluir que essas teologias não são para mim. Mas se você é adepto de uma das perspectivas teológicas mencionadas neste meu texto, fique ciente do meu respeito à sua adesão teológica, não me considero superior a você, nem te considero menos cristão que eu, a minha intenção não é atacar o que você acredita, apenas te mostrar as diferenças.

Por fim, algumas coisas aconteceram na minha vida e eu tive que procurar uma outra igreja, foi então que eu comecei a frequentar a Igreja Luterana perto de casa. No começo eu estranhei muito a Liturgia e a doutrina. Mas eu me interessei bastante. Foi então que ganhei um Livro de Concórdia de presente do pastor de lá e comecei a estudar. Já tinha em casa alguns livros luteranos que ganhei de amigos e estavam lá guardados e empoeirados. Então tirei a poeira e comecei a ler. Foi aí que resolvi deixar de vez para trás a Teologia reformada e me tornar um luterano. E como gostei muito do Livro de Concórdia e considerei (como ainda considero) uma expressão fiel das Escrituras, entrei para o Luteranismo Confessional, me filiei a uma igreja Luterana confessional (IELB) e hoje me sinto muito feliz como luterano, inclusive vindo para o seminário desta denominação para servir como puder e for útil dentro dessa paixão pela teologia e por atender as pessoas que eu tenho e com qualquer outra capacidade que eu tiver de ajudar os meus irmãos aqui.

Na minha família, também amigos próximos e nas redes sociais, todos dizem que eu mudei muito depois de virar luterano, que me tornei uma pessoa melhor, eu também me sinto bem melhor. E todos ficam muito curiosos para saber o que é essa teologia que me trouxe tantos resultados positivos. Como eu falei acima, existem muitos detalhes e diferenças, mas a maioria quer saber a questão soteriológica. Nas páginas que tenho nas redes sociais, tenho sido questionado com certa frequência sobre a crença Luterana a respeito da Predestinação e do “Livre-Arbítrio” também por pessoas que não me conhecem, isso é bem recorrente.

A DICOTOMIA EVANGÉLICA

Os evangélicos geralmente avaliam a teologia luterana dentro de sua dicotomia “calvinismo x arminianismo“. Calvinistas e arminianos que puxam a teologia para seus lados pegam trechos isolados de escritos de Lutero e de teólogos luteranos para levar o luteranismo para o calvinismo ou empurrar para o arminianismo. Isso está muito longe da verdade. O autor luterano Jordan Cooper observa:

“Portanto, nas conversas teológicas contemporâneas, é comum a opinião que há apenas duas opções teológicas: Calvinismo ou arminianismo reavivalista. O Luteranismo também permaneceu uma entidade própria, evitando a interação mais ampla com com as igrejas evangélicas. Isto teve efeitos tanto positivos como negativos. É a boa coisa que os luteranos têm evitado (certamente nem sempre) os vários modismos do mundo evangelical, seja a “vida com propósitos”, seja uma nova forma de Deus falar com as pessoas, ou alguma oração mágica que traria todos os tipos de bençãos para a vida. Mesmo que o evitar dessas coisas seja positivo e luteranos de alguma forma ficaram blindados desse tipo de teologia sem gosto, é triste que a tradição luterana não tenha sido capaz de propagar sua abordagem singular de Lei e Evangelho pelo nosso país”


Jordan Cooper. The Great Divide – A Lutheran Evaluation of Reformed Theology. Wipf and Stock Publishers: Eugene, OR, 2015. Edição do Kindle, posições 32-37.

Neste texto vai ser um problema falar tanto de calvinistas como arminianos, porque dentro dessas vertentes existe vários entendimentos diferentes sobre os pontos que vou levantar aqui e vou ter que correr o risco de generalizar injustamente contra esses dois movimentos ao tratar deste tema.

OS CALVINISTAS

No caso dos calvinistas, vou tratar do entendimento que eu tinha e o que mais vejo nas conversas com meus amigos calvinistas adeptos da TULIP e páginas e sites da internet mais populares que disseminam o calvinismo. Porém é bom deixar claro que nem todos os calvinistas se encaixam no que eu vou colocar aqui. Aliás, nem todos os calvinistas são adeptos da TULIP. Ela foi feita na Holanda, numa cada cidade chamada na época de Dort (atualmente Dordrecht), junto aos cânones de Dort, distante em tempo e geografia de Calvino (Calvino era francês, viveu e morreu na Suíça, no século 16. A TULIP foi desenvolvida na Holanda, no século 17). Muitas Igrejas Reformadas não abraçam a TULIP e os cânones de Dort, ou as três formas de unidade das igrejas reformadas (Confissão Belga, Catecismo de Heidelberg e os Cânones de Dort).

TULIP é um acróstico que significa:

T – Total depravation (total depravação do ser humano)

U – Unconditional election (eleição incondicional, predestinação)

L – Limited Atonement – Expiação Limitada (Cristo morreu somente pelos eleitos)

I – Irresistible grace (Graça irresistível)

P – Perseverance of saints (perseverança dos santos, uma vez salvo, sempre salvo)

A TULIP é chamada no Brasil de “5 pontos do Calvinismo” e, de forma geral, provavelmente a maioria dos calvinistas aceitam a TULIP como resumo de sua soteriologia, mas nem todos assim concordam pelo mundo. Além de Igrejas reformadas históricas alheias à TULIP, há também entendimentos críticos da TULIP, como os calvinistas amyraldianos e outros. Então eu faço essa ressalva para não dizer que estou generalizando, estou me referindo a talvez o maior grupo de calvinistas no Brasil, o dos adeptos da TULIP, mas não à totalidade do calvinismo. Porém, para fins de simplificação, vou usar sempre “calvinismo” para falar da visão de TULIP do assunto.

Os questionamentos mais frequentes vêm de calvinistas que leem o livro “Nascido Escravo” (título de uma adaptação feita por calvinistas para a obra “Da Vontade Cativa”, de Martinho Lutero) e acreditam que somente o que está neste livro é a teologia de Lutero sobre “Livre-Arbítrio”, sendo que logo na introdução a editora já explica que se trata de uma “versão condensada” do “Da Vontade Cativa”, de Lutero (e Lutero publicou sobre este e vários outros assuntos dezenas de obras entre livros, cartas, sermões, comentários bíblicos, aulas, debates, teses, anotações de alunos dele, etc, não só o “Da Vontade Cativa”, e ele não publicou nenhum “Nascido Escravo”), ou seja, esse livro famoso entre calvinistas não é de fato uma obra de Lutero, mas é uma versão adaptada, muita coisa foi editada e muita coisa ficou de fora. Aconselho os calvinistas e estudiosos interessados no pensamento de Lutero irem às obras de Lutero mesmo (publicadas no Brasil pelas editoras Concórdia e Sinodal, traduzidas direto do latim e do alemão, e com ricas notas de rodapé e introduções contextualizando o leitor historicamente das obras) para pesquisar o pensamento dele.

Quero acreditar que a intenção do autor de “Nascido Escravo”, Clifford Pond, e não Lutero, assim como as editoras que lançaram o livro, colocando Martinho Lutero como autor, tenham lançado na melhor das intenções, mas não se atentaram a esse risco do conteúdo original se perder em partes na “condensação”, pois muitos acabaram entendendo errado a Teologia de Lutero ao ler o “Nascido Escravo”, e passaram a entender que Lutero acreditava na “dupla predestinação” ou “Expiação Limitada” calvinista. Trechos importantes foram omitidos, como o argumento de Lutero contra a Diatribe de Erasmo respondendo sobre o argumento de Erasmo defendendo o “Livre Arbítrio” diante de Deus, que aparece nas páginas 101 e 102 das Obras Selecionadas de Lutero – Volume 4, citada acima, onde Lutero explica sua visão teológica da vontade oculta e da vontade revelada de Deus, argumentando que a vontade revelada de Deus é a que todos os homens sejam salvos, mas sua vontade oculta confere essa salvação a eleitos. Partes importantes do argumento de Lutero são omitidas, como essa, nas páginas que eu citei dessa obra:

“Porque esse quer que todos os seres humanos sejam salvos, visto que vem a todos com a palavra de salvação; e a falha é da vontade (humana) que não o admite, como diz Mateus 23.37: Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, e tu não o quiseste!”

Martinho Lutero. Da Vontade Cativa. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero volume 4 – Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo: Editora Concórdia; Porto Alegre: Editora Concórdia, 1993, p. 102.

Também disponível em formato eletrônico sob o título “BOUNDAGE OF The WILL”, gratuitamente em formato digital neste link.

Nessa obra “Da Vontade Cativa”, Lutero defende que a vontade humana é caída em coisas espirituais e não pode se voltar para Deus. Lutero defende a eterna eleição em Cristo, veja bem, em Cristo, como sendo causa da salvação humana, Cristo é a causa da nossa salvação e o trabalho de salvação é todo dele (monergismo), não a vontade humana e nem que “aceitamos” ou colabora nem debilmente com a salvação, mas que ela é um dom de Deus, defendendo assim a santa soberania de Deus sobre a salvação, porém Lutero jamais falou em perdição pela predestinação, negando a dupla predestinação. Robert Kolb, autor luterano, pontua:

“o entendimento de Lutero sobre a predestinação tinha a intenção apenas para reforçar a proclamação da segurança que vem da promessa de Deus recebida de várias maneiras pela sua Palavra”.


KOLB, Robert. TRUEMAN, Carl R. Between Wittenberg and Geneva – Lutheran and Reformed Theology in conversation (ed. virtual). Grand Rapids: Baker Academic, 2017. Edição do Kindle, p. 95.

Mas Lutero defende que essa questão da predestinação não pode ser esclarecida pela mente humana, apenas especulada e por isso não se deve fazer doutrinas sobre isso, além do que a bíblia afirma.

“Nós dizemos, como já dissemos antes, que não se deve debater acerca daquela secreta vontade da majestade; e a temeridade humana, que com contínua perversidade sempre investe e atenta contra ela pondo de lado as coisas necessárias, deve ser dissuadida disso e retirada, a fim de que não se ocupe em escrutar aqueles segredos da majestade, a qual não se pode atingir, visto que habita na luz inacessível conforme o testemunho de Paulo (1 Tm 6.16). Que se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado ou (como diz Paulo) com Jesus crucificado, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, porém abscônditos [Cl 2.3]; pois por meio deste ela possui abundantemente o que deve e o que não deve saber .

Martinho Lutero. Da Vontade Cativa. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero volume 4 – Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo: Editora Concórdia; Porto Alegre: Editora Concórdia, 1993, p. 105

Ou seja, para Lutero, a salvação está em Cristo e sua eleição está escondida em Deus, não cabe a nós fazer doutrinas sobre isso com o uso da lógica humana, além do que está revelado na Palavra de Deus, seja como Erasmo, negando a predestinação e afirmando que a vontade humana coopera com a salvação, seja do lado determinista, que coloca na conta de Deus a perdição do homem, como se Ele determinasse isso numa dupla predestinação. Deus condena muitas pessoas, mas seu desejo é que todos sejam salvos (1 Tm 2.4) e esse paradoxo bíblico deve ser preservado, não deve ser desconstruído pela razão humana.

Quero acreditar que a omissão de trechos assim no “Nascido Escravo” não foi intencional para dar um entendimento errado da teologia de Lutero e fazê-lo parecer um “calvinista”, mas isso criou algum mal entendido entre os calvinistas, que chegam a acusar os luteranos de não seguirem o “Luteranismo original”, sem entender o pensamento de Lutero, nem o dos luteranos de fato. Deixo aqui o conselho que você adquira o Volume 4 das Obras Selecionadas de Lutero pelas editoras Concórdia e Sinodal, leia o “Da Vontade Cativa”, que é o original sem edição e sem adaptação do “De Servo Arbitrio”, de Lutero, assim você vai ter acesso ao trabalho original de Lutero e poderá tirar conclusões mais acuradas, ao invés de ficar com o “Nascido Escravo”, que é uma modificação e adaptação do “De Servo Arbitrio” de Lutero. Eu não sei o que houve na confecção dessa obra, não estou concluindo nada sobre ela, apenas te falando que existe uma obra original e uma editada, então te aconselho a ficar com a original para entender melhor a teologia de Lutero e ler outras coisas dele também para tirar suas conclusões.

Outro frequente argumento é que Lutero escreveu a favor de algo parecido com a expiação limitada. Calvinistas como Timothy George (em sua obra Teologia dos Reformadores. São Paulo, Vida Nova, 1993.pp. 74-80) dizem que Lutero acreditava que Jesus morreu apenas pelos eleitos. Lutero fez uma declaração bem complicada nesse sentido. Ele disse assim, em suas preleções sobre o livro de Romanos, que George cita em seu livro, vou colocá-la na tradução das Obras Selecionadas de Lutero em português:

O segundo [argumento] é que “Deus deseja que todos os homens sejam salvos” [1 Tm 2.4] e que entregou seu Filho em favor de nós seres humanos, os quais ele criou por causa da vida eterna. E, de maneira semelhante: todas as coisas existem por causa do ser humano, mas ele próprio existe por causa de Deus, de sorte que nele possa deleitar-se, etc. Esses, como também outros argumentos são tão fracos quanto o primeiro. Essas sentenças só podem ser compreendidas com referência aos eleitos, como diz o apóstolo, em 2 Tm [2.10]: “Tudo por causa dos eleitos”. Pois, num sentido absoluto, Cristo não morreu por todos, visto que ele diz: “Esse é o sangue que é derramado por vós” e “por muitos” – ele não diz: por todos – “para a remissão dos pecados” [Mc 14.24; Mt 26.28; Lc 22.20].

O quarto [argumento]: por que então ele ordena fazer aquilo que não quer que seja feito por aquelas pessoas? E o que é mais grave: ele endurece a vontade, de sorte que as pessoas preferem agir contrariamente à lei. Portanto, o motivo das pessoas pecarem e serem condenadas, está em Deus. Este é o argumento mais forte e, também, o principal. E é, principalmente, a ele que o apóstolo se refere quando diz que Deus quer que assim seja e que, ao querê-lo, ele não é injusto, pois todas as coisas são suas, assim como a argila é do oleiro. Portanto, ele concede mandamentos a fim de que os eleitos os cumpram, mas para que os réprobos neles se enredem, para revelar a sua ira e sua misericórdia.

– Martinho Lutero. A Epístola do Bem Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posições 7411 e 7422

Isso parece resolver a questão, não é mesmo? Ponto final. Lutero era calvinista. Provavelmente se converteu lendo os cânones de Dort e abraçou a TULIP (que viria ao mundo só mais de 1 século depois dessas declarações)!!

Não. Essas declarações foram feitas em 1515, antes de Lutero publicar suas 95 teses em 1517, quando ele ainda estava sob o pensamento romano da Teologia da Glória (que busca explicar Deus fora da revelação que Ele deu), de dar respostas lógicas àquilo que está oculto em Deus, como a eleição eterna dos filhos de Deus. Lutero ainda mantinha traços do pensamento medieval e escolástico de um Deus punitivo e que tem prazer não em perdoar, mas em punir o pecador, apesar de já estar avançando para o que mais tarde compreenderia como a justiça de Deus ser em Cristo para perdão, não pelas obras para nos punir.

O teólogo Ricardo Rieth, editor destas preleções de Lutero em Português nas Obras Selecionadas, traz luz a esse período de Lutero, quando fez as preleções sobre romanos, registrada por seus alunos:

“Na preleção sobre Romanos, Lutero já demonstra um bom avanço na direção desta compreensão de “justiça de Deus”, embora ainda reproduza, consideravelmente, o vocabulário e as formas de ensino de seus mestres próximos e distantes”.

– Ricardo W. Rieth. Introdução. A Epístola do Bem Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos – Introdução. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posição 6014.

Mesmo em sua obra “Da Vontade Cativa” ainda há declarações polêmicas interpretadas por alguns como determinismo ou dupla predestinação da teologia da glória, o que Lutero já combatia na época, pois ele já mostrava contrário à especulação sobre a predestinação, como se vê no debate de Heidelberg que ele participou (Obras Selecionadas, volume 1), e em Marburgo, em seu acalorado debate com Zwinglio (cuja ata completa se encontra traduzida para o português na obra “Isto É Meu Corpo”, do autor e teólogo luterano alemão Hermann Sasse, lançada no Brasil pela editora Concórdia e à venda no site deles). Lutero foi evoluindo seu pensamento até o que ficou registrado em seus catecismos e suas outras obras posteriores.

Ou seja, Lutero abandonou a posição da dupla predestinação, conforme veremos mais para frente. Se você quiser conhecer a posição somente de Lutero, sem as posições das confissões luteranas e autores luteranos atuais que coloco aqui no texto, basta acessar esse link: Lutero e a Predestinação

O próprio Lutero, 30 anos depois de suas preleções sobre Romanos, comenta sua mudança de visão do que implicava em sua opinião de dupla predestinação e um Deus que ordena até o pecado para a destruição do pecador, para um Deus de amor que já puniu os nossos pecados em Cristo e nos aceita pela fé nEle:

“Eu fora tomado por uma extraordinária paixão em conhecer a Paulo na Epístola aos Romanos. Fazia-me tropeçar não a firmeza de coração, mas uma única palavra no primeiro capítulo: ‘A justiça de Deus é nele revelada’ (Rm 1.17). Isso porque eu odiava esta expressão ‘justiça de Deus’, pois o uso e o costume de todos os professores me havia ensinado a entendê-la filosoficamente como justiça formal ou ativa (como a chamam), segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos.

Eu não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus, eu me sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ter a esperança de que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação. E mesmo que não me indignasse, blasfemando em silêncio contra Deus, eu resmungava violentamente contra ele. Como se não bastasse que os míseros pecadores, perdidos para toda a eternidade por causa do pecado original, estivessem oprimidos por toda sorte de infelicidade através da lei do decálogo, deveria Deus, ainda, amontoar aflição sobre aflição, através do evangelho, e ameaçá-los com sua justiça e sua ira também através do evangelho? Assim, eu andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o que Paulo queria.

Aí Deus teve pena de mim. Dia e noite eu andava meditativo, até que, por fim, observei a relação entre as palavras: ‘A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé.’ Aí passei a compreender a justiça de Deus como sendo uma justiça pela qual o justo vive através da dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido é o seguinte: Através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva, através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: ‘O justo vive por fé. Então me senti como que renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso.

Aí toda a Escritura me mostrou uma face completamente diferente. Fui passando em revista a Escritura, na medida em que a conhecia de memória, e também em outras palavras encontrei as coisas de forma análoga: ‘Obra de Deus’ significa a obra que Deus opera em nós; ‘virtude de Deus’ – pela qual ele nos faz poderosos; ‘sabedoria de Deus’ – pela qual ele nos torna sábios. A mesma coisa vale para ‘força de Deus’, ‘salvação de Deus’, ‘glória de Deus’. Assim como antes eu havia odiado violentamente a frase ‘justiça de Deus’, com igual intensidade de amor eu agora a estimava como a mais querida. Assim esta passagem de Paulo de fato foi para mim a porta do paraíso”
– Luther, Martin. WA 54, p. 186, apud A Epístola do Bem Aventurado Apóstolo Paulo aos Romanos – Introdução. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero [on-line] volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posições 5995 – 6014.

Lutero relata sua “conversão” e mudança de perspectiva do que entendia no trecho acima no livro de Romanos, e o que passou a entender anos depois. E assim a Teologia Luterana admitiu essa visão posterior de Lutero, aceitando a Teologia da Cruz com seus paradoxos e “loucuras” para o homem natural, rejeitando a visão medieval de um Deus que tem prazer em punir ao invés de salvar. Mais para frente vamos ver mais sobre isso.

OS SINERGISTAS (“ARMINIANOS”)

Também é desafiador falar dos arminianos sem correr o risco de injustas generalizações. O Arminianismo histórico dos “remonstrantes” foi uma crítica ao entendimento da predestinação dentro do calvinismo. Jakob Hermanszoon, mais conhecido pela forma latina de seu nome: Jacobus Arminius (ou a forma em português do nome dele: Tiago Armínio) questionou o que aprendeu sob a tutela de Theodore Beza, sucessor de Calvino em Genebra, e propôs novas ideias sobre a predestinação. Essas ideias foram aceitas por teólogos conterrâneos dele na Holanda, que organizaram um movimento visando dar espaço a esse novo entendimento, chamado de movimento Remonstrante, que foi rejeitado pela Igreja Holandesa, que era reformada e estatal, que veio a excomungar e perseguir os remonstrantes por suas posições.

Esse movimento remonstrante, ou arminiano, a princípio não cresceu muito. ficou obscuro no protestantismo, confinado à Igreja Remonstrante holandesa e talvez a algumas igrejas batistas no Reino Unido e Holanda (existe um debate muito grande entre batistas se em sua origem a denominação era sinergista ou monergista, gerais ou particulares, e não quero me meter nesse rolo). O luteranismo não teve nenhum envolvimento com isso. Nossas confissões já estavam fechadas nessa época e as igrejas que não aderiram às confissões tinham outras questões, alheias à da Igreja Reformada Holandesa. O movimento só obteve popularidade no século seguinte, com John Wesley e os metodistas e mais para frente e vai recebendo novos formatos cada vez mais sinergistas até os dias contemporâneos, com os avivalistas estadunidenses como Charles Finney, William Seymour, Aimeé Semple McPherson, Billy Graham, Kenneth Hagin e outros..

O arminianismo como é conhecido no Brasil é uma herança do pensamento de John Wesley e de outros pregadores sinergistas posteriores, não de Armínio. Wesley tomou por base a teologia arminiana holandesa, mas também bebeu do pietismo alemão, do puritanismo britânico e montou uma teologia própria, que foi continuada por outras igrejas que se inspiraram nesse reavivamento do sinergismo no protestantismo, como a Igreja Metodista, que nasceu como um movimento dentro da Igreja Anglicana, com o próprio John Wesley, mas depois os adeptos desta doutrina saíram da Igreja Anglicana e formaram a Igreja Metodista, mas também outros movimentos evangelicais posteriores, como as Igrejas adventistas, igrejas unicistas, igrejas pentecostais e boa parte dos avivalistas estadunidenses, como os citados acima (Finney, Billy Graham, etc).

No Brasil, o sinergismo ganha força com a teologia pentecostal e sua ênfase na experiência pessoal do cristão como formadora do pensamento teológico, junto com as Escrituras (ou sendo avaliada pelas Escrituras, segundo muitos deles). A maioria dos que são chamados “arminianos” no Brasil ou são metodistas, ou são de igrejas pentecostais, ou neopentecostais.

Portanto, houve também uma mistura no arminianismo brasileiro com várias outras ideologias populares, não só sinergistas, como pelagianas também (que diz que o homem sozinho decide por Deus) e hoje se chama (incorretamente) de arminianismo qualquer teologia sinergista do meio evangelical, dos metodistas aos neopentecostais. Etimologicamente, somente a Igreja Remonstrante Holandesa poderia ser chamada de “arminiana”, mas o termo, além de ter sido adotado por John Wesley, os metodistas e a Igreja do Nazareno (herdeira também do metodismo), se popularizou no Brasil para se referir a qualquer expressão sinergista do meio evangelical.

Para os calvinistas mais radicais, quem não acredita na TULIP é automaticamente chamado de arminiano, sem se considerar anacronismos e outras inconsistências com o título “arminiano”. Até luteranos são incorretamente chamados de arminianos por esses mais radicais. Fica difícil trabalhar com um calvinista radical em sua tara por chamar qualquer um que discorde da TULIP de arminiano. Eu mesmo era assim e só depois que virei luterano que as “escamas” dos meus olhos caíram e percebi que discordar da TULIP não é ser sinergista, como dizem esses mais radicais (como eu era), e que nem todo sinergista é arminiano, mas o nome “arminiano” pegou para se chamar os que crêem que o homem coopera com Deus em algum momento de sua salvação. Então, para simplificar, mesmo incorrendo inevitavelmente em algumas injustiças, vou chamar aqui os sinergistas de arminianos.

Alguns arminianos também me procuram ao ver as críticas e rejeições que os luteranos têm com movimentos calvinistas, como o puritanismo, e discordâncias com o calvinismo em si, e acreditam que o luteranismo esteja de acordo com o arminianismo que eles abraçam; acham que Lutero e os luteranos eram sinergistas aos moldes de John Wesley ou de Tiago Armínio, ou dos pensadores sinergistas atuais. Existem realmente movimentos e idéias sinergistas entre nós, como admito aqui no texto, como é o caso de muitos luteranos pietistas (movimento que também influenciou o sinergismo de John Wesley e de outros), mas nossas confissões rejeitam o pensamento sinergista na salvação e vai contra muitas ideias do pietismo (bem como o pietismo é contra pontos das confissões luteranas do século XVI, com seu padrão quatenus de avaliação do livro de Concórdia).

LUTERANOS “ORIGINAIS”

Alguns já partem para a teoria de conspiração e dizem que o Luteranismo sofreu modificações significativas como um todo e não representa mais o pensamento da reforma luterana, que seria igual ao do grupo deles. O calvinista R. C. Sproul faz uma declaração bem fora da realidade:

“É importante para nós vermos que a doutrina reformada da predestinação não foi inventada por João Calvino. Não há nada na visão da predestinação de Calvino que não havia sido antes pronunciada por Lutero e Agostinho. Depois, o luteranismo não seguiu Lutero nesta questão mas Melanchthon, que alterou suas visões depois da morte de Lutero. É também digno de nota que em seu famoso tratado sobre teologia, As Institutas da Religião Cristã, João Calvino escreveu pouco sobre o tema. Lutero escreveu mais sobre predestinação que Calvino”.

– R. C. Sproul. Chosen by God. Wheaton: Tyndale House Publishers, 1986, p. 15. Citado em: James R. Swan. A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO DE LUTERO É “REFORMADA”? Disponível em <http://www.e-cristianismo.com.br/historia-do-cristianismo/lutero/a-doutrina-da-predestinacao-de-lutero-e-reformada.html#sdendnote4sym>. Acesso em 09/10/2021

Não sei de onde Sproul tirou a ideia que Lutero falou mais de predestinação do que Calvino, talvez seja pelo volumoso debate com Erasmo, mas ele não apresenta provas dessa declaração e não conheço nenhum levantamento sobre isso, então não posso verificar se isso é verdade ou não, mas a afirmação que os luteranos posteriores a Lutero não seguiram o pensamento de Lutero sobre a predestinação não é verdadeiro, conforme vamos ver por aqui.

É curioso que esta acusação de que existiam “luteranos originais” e que os luteranos atuais não seguem os mesmos princípios não é só dos calvinistas e arminianos que eu considero radicais por pensarem assim sem se informar antes de maneira apropriada e já nos acusarem dessa forma. Na minha página, de vez em quando, aparecem também católicos radicais, pentecostais radicais, Adventistas radicais, Testemunhas de Jeová e diversos outros grupos dizendo que os “luteranos originais” seguiam as doutrinas deles e que nós alteramos as coisas hoje em dia, mas nunca mostram quem alterou, quando foi alterado, onde foi alterado e qual grupo luterano segue essas tais “alterações”, ou seja, imaginam coisas baseados em interpretações de trechos da obra de Lutero e não vão muito a fundo para entender a dúvida ou estranhamento deles.

Eu não entendo mesmo qual a necessidade deles que Lutero tenha que ter crido no que calvinistas, arminianos, católicos, adventistas, pentecostais, etc, acreditam para “validar” a crença deles e por isso se esforçam muito para tentar “provar” que Lutero e os “luteranos originais” criam como eles. Talvez parte disso seja culpa nossa como luteranos. Costumamos ficar isolados um pouco e por isso existe um desconhecimento muito grande da nossa doutrina e nossa cultura, esse desconhecimento facilita, talvez, essas ideias absurdas sobre nós e nossa doutrina. Talvez se nos soubéssemos dialogar melhor com os demais cristãos sobre teologia, eles nos conheceriam melhor e entenderiam mais sobre nós. Tem o lado positivo de que não ficamos entrando nessas modas evangélicas e das outras vertentes protestantes, por estarmos distantes, mas, por outro lado, talvez uma aproximação saudável seja frutífera para os dois lados. Talvez..

As confissões luteranas estão aí à disposição no Livro de Concórdia para quem quiser seguir a Jesus no “Luteranismo original”, ou quem segue a Jesus em outro lugar e tem curiosidade de nos conhecer melhor, não houve modificações; como houve, por exemplo, na Confissão de Fé de Westminster, documento confessional da Igreja Presbiteriana e de muitos outros calvinistas. As confissões luteranas estão intactas e não tiveram modificações. O “luteranismo original” está disponível a quem quiser conhecer em nossas confissões.

Se seguíssemos Melanchton, quais obras de \melanchton seguiríamos? É muito genérica e sem fontes essa acusação, que está errada. Melanchton é seguido onde ele acertou, como na Confissão de Augsburgo, na Apologia e no Tratado sobre o Papa, obras que estão nas nossas confissões, mas onde ele se desviou daquilo que ele mesmo pregava, como a flexibilização da confissão de Agusburgo para atender os reformados e seu sinergismo, nós rejeitamos.

AS IGREJAS LUTERANAS

As Igrejas Luteranas têm suas posições oficiais sobre assuntos teológicos, no que diz respeito às coisas espirituais e deste mundo, e os teólogos, incluindo Lutero, fizeram e fazem suas dissertações com ideias pessoais sobre temas pontuais, como a soteriologia, o que representa a opinião pessoal deles, não a opinião geral do luteranismo, até porque o luteranismo é dividido em denominações, concílios, sínodos e federações diferentes. Existem denominações luteranas seguem as confissões do luteranismo do século 16, reunidas no Livro de Concórdia, existem outras que são mais autônomas em suas resoluções e determinam suas posições de outras formas, expressando seus artigos de fé independentemente, existem igrejas luteranas que não seguem todas as confissões do século 16 reunidas no Livro de Concórdia, mas, partindo da Confissão de Augsburgo e dos catecismos de Lutero, elaboram suas próprias expressões de fé.

Daí vemos Igrejas Luteranas conservadoras, moderadas e liberais, pois têm suas organizações e artigos de fé conforme acreditam ser próprio para seus contextos. Eu não estou falando aqui em nome do Luteranismo em geral, porque há diferenças entre nós, é necessário, também, buscar os posicionamentos oficiais do indivíduo ou grupo que você tem contato para interpretar o luteranismo que eles praticam. Também não se chega a conclusões exatas ao avaliar igrejas luteranas inteiras, ou o próprio luteranismo com opiniões pessoais, sejam membros ou teólogos de alguma igreja Luterana. Às vezes um indivíduo diverge e pensa diferente do que sua denominação decide, por isso qualquer julgamento deve ser muito cuidadoso e aberto para novas informações para uma avaliação melhor.

Ou seja, não existe uma só “Igreja Luterana”, mas existem igrejas luteranas diferentes no luteranismo, doutrinas diferentes. Existem igrejas que seguem os posicionamentos oficiais luteranos do século 16, existem igrejas que não seguem, mas têm herança histórica com o luteranismo, e existem as demais igrejas luteranas independentes e autônomas, sem ligação formal com o luteranismo histórico.

Existem entre grupos luteranos aqueles indivíduos ou mesmo denominações que creem em doutrinas bem diferentes do que foi a Reforma Luterana, apenas com a placa de “igreja luterana”, porém sem relação histórica ou teológica com o luteranismo histórico, assim como acontece com outras denominações que têm cismas e rachas entre elas e veem igrejas com os nomes iguais, mas com doutrinas bem diferentes da fé e história da denominação. Você pega, por exemplo, a Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte – MG, de onde vem o conhecido grupo “Diante do Trono”, eles têm o nome de “Batistas”, mas a teologia deles é totalmente diferente da doutrina Batista histórica, expressas nas declarações de fé das igrejas batistas pela história. Isso pode acontecer no Luteranismo também, igrejas luteranas bem distantes do pensamento luterano original, como tenho visto na internet igrejas “luteranas” pentecostais, adventistas e até Luterana que se diz puritana já vi pela internet, por mais absurdo que isso seja.

São duas as linhas principais do Luteranismo Mundial, que são reunidas no Concílio Luterano Internacional (no Brasil temos a IELB neste concílio) e na Federação Luterana Mundial (no Brasil temos a IECLB nesta federação). Existem outras independentes que também são movimentos luteranos históricos, fora destas organizações. Então não há uma só igreja luterana, mas igrejas luteranas diferentes com teologias diferentes.

Bom, tem muito mais coisa a esse respeito para escrever, com muitos detalhes sobre o luteranismo, mas não quero fugir do assunto do texto, se você quiser saber melhor sobre as igrejas luteranas, tenho um texto aqui no blog sobre isso, é só clicar >aqui<. Só apresentei essas diferenças para você entender que os luteranos não são unânimes em tudo, como ocorre em qualquer outro grupo religioso, ou melhor, em qualquer grupo humano. Assim também igrejas luteranas não são necessariamente unânimes. Então pode acontecer de você encontrar luteranos que pensam diferente do que estou escrevendo aqui, até igrejas que ensinam diferente. Eu sigo o ramo confessional do luteranismo, mas não estou falando oficialmente em nome deles, estou passando o que tenho aprendido nesses anos como luterano, e tenho visto que, no geral, os luteranos pensam parecido com o que estou apresentando, mesmo os de linhas diferentes, mas podem acontecer divergências..

LUTERANISMO E LUTERO

Muitos também acham que damos um valor a Lutero como sendo uma autoridade de fé, mostram trechos dos escritos de Lutero para dizer que deveríamos crer naquele trecho, porque foi Lutero quem escreveu, então já quero mostrar claramente que Lutero não é infalível para nós e nenhuma sabedoria, além da sabedoria de Deus registrada nas Escrituras, deve ser aceita sem questionamentos e exame, para conferirmos se está de acordo com as Escrituras. Se não estiver, seja quem for, Lutero, Calvino, Armínio, etc, deve ser rejeitado como norma de fé.

Lutero teve muitos erros, assim como Calvino, Armínio, Wesley e todos os servos de Deus na História. Nós, luteranos confessionais, aceitamos as Confissões como expressões das Escrituras, mas não são “Escrituras Sagradas” para nós. As Confissões são nosso “ponto de Concórdia”, ali convergimos e concordamos entre nós como luteranos. Nosso diálogo com outras tradições parte também dali, são nossos princípios bíblicos inegociáveis, mas isso porque são expressões das Escrituras, não porque são complemento às Escrituras. Então temos Lutero como um instrumento nas mãos de Deus, mas Deus é nosso Mestre, Lutero foi um ótimo teólogo, pregador e professor das Escrituras, mas ele apontava para Cristo e para as Escrituras, que é para onde vamos beber da sabedoria de Deus – nas Escrituras.

Muitos também apontam os erros de Lutero e me perguntam como posso estar numa vertente cristã fundada por alguém tão imperfeito. Bom, eu acredito que cristianismo não é sobre ser bom, mas sobre não sermos bons e a necessidade de sermos perdoados, todos os heróis da fé foram pecadores e só foram heróis por sua fé, não por obras extraordinárias, por isso tudo que nós e as outras pessoas fazem deve ser analisado com as Escrituras, se o conjunto da obra de alguém for totalmente contra as Escrituras, então rejeitamos essa pessoa como pensador teológico em nosso meio, se não for o caso, devemos avaliar com as Escrituras e usar o que for bom para a edificação, reconhecendo que a pessoa é, ou foi, um instrumento na mão de Deus para a nossa edificação ou edificação da Igreja, mas são apenas instrumentos e instrumentos podem quebrar, podem ser defeituosos, o mérito das coisas que Deus faz na Igreja Cristã é sempre de Deus, não dos personagens que Ele usa; mas sempre devemos avaliar tudo e reter o que é bom.

Existe muito desconhecimento sobre luteranismo no evangelicalismo brasileiro, e ultimamente muitos tem despertado uma curiosidade sobre isso. Por causa disso, alguns tem feito declarações equivocadas ou mesmo maldosas sobre a fé luterana, deixando as pessoas confusas ou convictas de mentiras sobre o luteranismo. Por isso muitos me procuram perguntando sobre mitos e boatos que dizem sobre o luteranismo e Lutero, espalhados nas igrejas evangélicas ou na internet.

LUTERANOS, CALVINISTAS E ARMINIANOS NA PREDESTINAÇÃO

O tema que estou usando aqui é o tema mais falado entre Calvinistas e Arminianos, cada um puxando a sardinha para seu lado. Não quero aqui causar intrigas ou alimentar as intrigas antigas entre estes grupos, apenas quero tirar algumas dúvidas sobre isso com nossos documentos oficiais e explicações de teólogos luteranos e Lutero a respeito. E quero frisar neste capítulo que calvinistas e arminianos não são unânimes e nem todos pensam desta forma que estou tratando no texto e tentando responder, mas estou tratando do que é mais popular nestas vertentes.

Vamos lá.

No exame das escrituras, encontramos paradoxos em citações bíblicas (e não contradições), como a que diz que Deus “quer que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade (1 Timóteo 2:4)”, e a que diz que “fomos feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade (Efésios 1:11)”.

Em geral (salvo exceções), calvinistas e arminianos costumam resolver estes paradoxos. Os calvinistas costumam dizer que o “todos” desta passagem não se refere à toda humanidade, mas só aos eleitos, resolvendo o problema do paradoxo para eles, ao pensar que o “todos” se refere só aos predestinados. Já os arminianos costumam dizer que o propósito de Deus na eleição é a presciência e que Ele anteviu a fé daqueles que iriam aceitar sua oferta, mas suas oferta foi para todos, daí resolvem com sua lógica também o paradoxo entre essas duas passagens.

E no luteranismo? Como se resolve esses paradoxos? Qual a lógica empregada?

Não se resolve. Se deixa do jeito que está e se prefere não usar a lógica humana como juíza de questões doutrinárias, mas só as Escrituras (Sola Scriptura), a lógica fica como serva das Escrituras, não juíza dela, se a Bíblia afirma duas coisas diferentes que estão além de nossa compreensão humana, não se usa a compreensão humana limitada e corrompida pelo pecado para julgar e fechar a questão, se deixa aberta e se crê somente, porque assim a Palavra de Deus diz e assim cremos, mesmo sem entender. Veja abaixo como as confissões trabalham essa questão.

O livro de Concórdia, a confissão de boa parte das igrejas luteranas, escrita após a morte de de Lutero, concorda com Lutero sobre o tema abordado neste post e afirma que a eleição se dá por predestinação, não por presciência, ela começa explicando o conceito de presciência para os luteranos:

“[1] Sobre a eleição eterna dos filhos de Deus ainda não ocorreu, entre os teólogos da Confissão de Augsburgo, nenhuma controvérsia pública, escandalosa e amplamente difundida. Visto, porém, que esse artigo foi objeto de acalorada discussão discussão em outros lugares e que também entre os nossos houve alguma agitação a respeito, e considerando que, além disso, os teólogos nem sempre falaram a mesma linguagem, por isso, a fim de, com a graça de Deus, prevenir que futuramente, entre aqueles que vierem depois de nós, surja desunião e separação quanto a esse ponto, quisemos, na medida de nossa capacidade, inserir também aqui uma explanação desse artigo. Assim todos poderão saber qual é a nossa unânime doutrina, fé e confissão quanto a este artigo.

[2] Quando a doutrina deste artigo é proposta a partir da palavra de Deus e segundo o padrão da mesma, não se pode nem se deve considerá-la inútil ou desnecessária, muito menos ofensiva e prejudicial. Porque a Escritura Sagrada não menciona esse artigo em apenas um lugar e de passagem ,as trata dele com detalhes e o ensina em muitas passagens. [3] E também não se deve ignorar ou rejeitar a doutrina da palavra de Deus por causa de abuso ou mal-entendido. Pelo contrário, exatamente para evitar todo abuso e mal-entendido, o sentido correto precisa e deve ser explicado com base na Escritura. E, de acordo com isso, o resumo e o conteúdo singelos da doutrina sobre esse artigo consistem nos pontos que seguem:

[4] Em primeiro lugar, é preciso notar com cuidado a diferença entre a eterna presciência de Deus e a eterna eleição de seus filhos para a vida eterna. Pois praescientia vel praevisto [presciência ou antevisão], isto é que Deus vê e sabe tudo antecipadamente, antes de acontecer, o que se chama de presciência de Deus, abrange todas as criaturas, boas e más. De antemão, Deus vê e sabe tudo o que é ou será, tudo o que acontece ou acontecerá, seja bom ou mau, já que todas as coisas, passadas ou futuras, são manifestas e presentes para Deus, como está escrito em Mateus 10[.29]: “Não se vendem dois pardais por uma moedinha? Entretanto, nenhum deles cairá no chão sem o consentimento do Pai de vocês”. E no Salmo 139[.16]: “Os teus olhos viram a minha substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles ainda existia”. Também em Isaías 37[.28]: “Mas eu sei onde você está; conheço o seu sair e o seu entrar e o seu furor contra mim”.

Fórmula de Concórdia. Declaração Sólida – XI. LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, p. 687

Depois a Fórmula de Concórdia afirma a predestinação como fator causativo da nossa eleição em Cristo, Ele nos elege pela sua graça e Deus nos recebe em Cristo e isso não vem de nós, vem de Cristo. Somos escolhidos em Cristo para a nossa salvação:

[5] Entretanto, a eterna eleição de Deus vel praedestinatio [ou predestinação], isto é, a divina preordenação para a salvação, não abrange, igualmente, os piedosos e os maus, mas apenas os filhos de Deus, que foram eleitos e ordenados para a vida eterna “antes da fundação do mundo”, como Paulo diz em Efésios 1[.4,5]. Ele nos escolheu em Cristo Jesus e “nos predestinou para sermos adotados como filhos”.

[…]

[8] A eterna eleição de Deus não só prevê e sabe com antecedência a salvação dos eleitos, mas, por graciosa e benevolência de Deus, em Cristo Jesus, também é causa que cria, opera, ajuda e promove a nossa salvação e tudo o que diz respeito a ela. E nossa salvação se fundamenta nisso de maneira tal que “as portas do inferno” nada podem contra ela, como está escrito: As minhas ovelhas, “ninguém as arrebatará da minha mão” [João 10.28. A referência às portas do inferno vem de Mateus 16.18]. Também: “E creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna [Atos 13.48]

Fórmula de Concórdia. Declaração Sólida – XI. LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, p. 688

Mesmo assim, não somos condenados por Deus pela predestinação, nem pela presciência. Deus vê o mal, mas não participa dele de forma alguma. A Fórmula de Concórdia afirma:

[6] A presciência [praescientia] de Deus vê e conhece antecipadamente também o mal, não, porém, assim como se fosse da graciosa vontade de Deus que ele devesse acontecer. Pelo contrário, aquilo que a vontade perversa e ímpia do diabo de dos seres humanos se proporá fazer, e fará, e vai querer fazer, tudo isso Deus vê e sabe antecipadamente. A praescientia, isto é, a presciência de Deus, observa sua ordem também nos atos ou nas obras ímpias, de tal forma que Deus determina limite e medida para o mal, que Deus não quer: até onde deve ir e por quanto tempo deve durar, quando e como ele o quer impedir e castigar. Pois o Senhor governa tudo isso de tal maneira que tem que resultar em honra ao seu nome divino e salvação de seus eleitos, devendo os ímpios, por isso, ficar envergonhados.

[7] No entanto, a presciência de Deus não é o princípio e a causa do mal (pois Deus não cria nem opera o mal, ele não ajuda nem promove o mal). Pelo contrário, a má e perversa vontade do diabo e do seres humanos é o princípio e a causa do mal, conforme está escrito: “A sua ruína, ó Israel, vem de você, e só de mim, o seu socorro” [Oséias 13.9]. Também: “Pois tu não é Deus que se agrade com a iniquidade” [Salmo 5.4].

Fórmula de Concórdia. Declaração Sólida – XI. LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, p. 688

E, por fim, a Fórmula de Concórdia nos adverte a não explicar com a lógica humana a questão da predestinação e da presciência divinas, não adentrar na oculta vontade de Deus, pois fora de sua revelação não devemos fazer doutrinas:

[13] Por isso, se queremos pensar ou falar de modo correto e proveitoso a respeito da eterna eleição ou predestinação e preordenação dos filhos de Deus para a vida eterna, devemos nos acostumar a não especular em torno da nua, secreta, oculta e insondável presciência de Deus. Pelo contrário, devemos meditar o conselho, propósito e preordenação de Deus em Cristo Jesus (que é o verdadeiro “Livro da Vida”), da forma como nos é revelado mediante a palavra.
[…]

[26] E a respeito disso não devemos emitir parecer com base em nossa razão, nem com base na lei ou de acordo com aparência exterior. Também não devemos atrever-nos a investigar o abismo secreto e oculto da presciência divina, mas devemos atentar na vontade revelada de Deus, pois ele nos revelou e “desvendou o mistério da sua vontade” e o manifestou por Cristo, para que fosse pregado (Ef 1[.9,10]; 2 Tm 1[.9-11]).

Fórmula de Concórdia. Declaração Sólida – XI. LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, pp. 689-690,691.

O teólogo luterano John Theodore Mueller, no século XX, afirma categoricamente o significado dessas declarações da Fórmula de Concórdia:

“A eleição eterna da graça de Deus não se realizou em consideração à prevista fé final do homem (eletio intuitu fidei finalis), mas, pelo contrário, abrangeu esta fé conjuntamente com todo o plano da salvação (ordo salutis, media salutis). como seja a conversão, a justificação e a conservação final. O cristão não é, por conseguinte, eleito por causa da fé prevista (ex praevisa fide finali). Ao contrário, tornou-se crente no tempo por causa de sua eleição eterna para a salvação. A pessoa é conduzida À fé salvadora no tempo precisamente porque Deus, desde a eternidade, a elegeu graciosamente para a salvação (At 13.48; Ef 1.3-6; Rm 8.28-30)1


– John Th. Mueller. DOGMÁTICA CRISTÃ. Porto Alegre: Concórdia, 2004, p. 547.

Aqui nos distanciamos dos sinergistas, que mais tarde no meio evangélico vieram a ser conhecidos como “arminianos”, estando em maior número entre pentecostais, metodistas e entre muitos batistas. Não acreditamos que Deus “viu a fé” nos eleitos e pela presidência salva os que Ele sabia que creram, mas sim que Deus deu a fé como presente para aqueles que Ele salva por sua graça.

A fórmula de Concórdia também diz:

[9] 2. Rejeitamos também o erro dos pelagianos crassos, os quais ensinaram que o ser humano, com suas próprias forças, sem a graça do Espírito Santo, pode converter-se a si mesmo a Deus, crer no evangelho, obedecer de coração à lei de Deus e, assim, merecer perdão dos pecados e vida eterna.

[10] 3. Rejeitamos ainda o erro dos semipelagianos, os quais ensinam que o ser humano pode, com as próprias forças, dar início à sua conversão, não podendo, entretanto, completá-la sem a graça do Espírito Santo.

[11] 4. Rejeitamos igualmente o ensino no sentido de que, embora o ser humano, antes de seu renascimento, seja demasiadamente fraco para com, seu livre-arbítrio, fazer o início e, com suas próprias forças, converter-se a Deus e de coração obedecer à lei de Deus, a vontade do ser humano, todavia, depois que o Espírito Santo, com a pregação da palavra, fez o começo e nela ofereceu sua graça, pode então, a partir de suas próprias forças naturais, acrescentar algo – embora pouco e com fraqueza -, ajudar e cooperar, qualificar-se e preparar-se para a graça, apreender e aceitá-la, e crer no evangelho. [12]

5. Rejeitamos, da mesma forma, que o ser humano, depois de regenerado, pode observar com perfeição e integralmente cumprir a lei de Deus, e que esse cumprimento é nossa justiça diante de Deus, pela qual merecemos a vida eterna.

[13] 6. Também rejeitamos e condenamos o erro dos entusiastas*, os quais imaginam que Deus atrai as pessoas para si, ilumina, justifica e salva sem meios, sem que se ouça a palavra de Deus, também sem o uso dos santos sacramentos.

– Epítome da Fórmula de Concórdia II:9-13. LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, pp. 532-533

* Conforme nota de rodapé na Epítome da Fórmula de Concórdia II:13, em Livro de Concórdia, 2021, p. 533, diz-se: “à margem do texto alemão e do latino encontra-se a seguinte nota: ‘Entusiastas chamam-se aqueles que esperam iluminação celeste do Espírito sem a pregação da palavra de Deus’”.

Mas os luteranos se distanciam da fé da maioria dos calvinistas, que dizem que Jesus veio apenas para os eleitos e que ama somente os predestinados, alguns até exageram dizendo que Deus odeia e quer mandar para o Inferno a muitos que, segundo eles, não foram predestinados à salvação.

A Fórmula de Concórdia é bem clara:

[15] 1. Que a raça humana verdadeiramente foi redimida e reconciliada com Deus por meio de Cristo, o qual por sua inocente obediência, paixão e morte mereceu para nós “a justiça que vale diante de Deus” e a vida eterna.
[16] 2. Que esse mérito e esse benefício de Cristo nos devem ser apresentados, oferecidos e distribuídos por meio de sua palavra e sacramentos
Declaração Sólida – XI. Fórmula de Concórdia. In: LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, p. 690.

Fora das confissões, temos o mesmo entendimento de Lutero sobre o “todos”:

“Eu acreditaria com alegria se eu fosse como São Pedro, São Paulo e outros piedosos e santos, mas eu sou muito e totalmente pecador. Sendo assim, quem sabe se fui eleito para a salvação?
Resposta: Observa as palavras [de João 3:16]. Rogo-te que determines como e de quem ele está falando: “Deus amou o mundo de tal maneira” e “para que todo aquele que nele crê”.

Agora, a palavra “mundo” não significa só São Pedro e São Paulo, mas toda a raça humana, toda junta. E aqui não fica ninguém excluído. O Filho de Deus foi dado por todos. Todos deveriam crer, e todos os que creem não perecerão, etc. Toca em teu nariz, te suplico, para que determines se não és um ser humano (isto é, parte do mundo) e como qualquer outro homem pertences ao número dos que foram incluídos pela palavra “todos”.

– Martinho Lutero (WA 21, 409 f E 12, 365 – Sl 11, 1107, citado em What Luther Says, vol 2, pág 608, 609.)

Para ser mais claro ainda, temos a declaração da Saxônia, de 1592, uma declaração de teólogos luteranos que responderam aos “cripto-calvinistas”, que eram pastores e professores ligados às igrejas e universidades luteranas que queriam mudar a teologia dos luteranos. As propostas de mudanças dos cripto-calvinistas modificavam tanta coisa na teologia luterana que a descaracterizavam totalmente. Na verdade, queriam o calvinismo no lugar do luteranismo, por isso receberam esse apelido. Essa declaração da Saxônia foi usada como apêndice do Livro de Concórdia no século 19, quando um príncipe-imperador, onde hoje é a Alemanha, promoveu uma união entre calvinistas e luteranos e muitos recusaram. O texto é bem claro:

Da Predestinação e da Providência Eterna de Deus – A doutrina pura e verdadeira das nossas Igrejas neste artigo:

1) Que Cristo morreu por todos os homens e, como o Cordeiro de Deus, levou os pecados do mundo inteiro.

2) Que Deus não criou homem algum para a condenação, mas quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Ele, portanto, chama a todos para ouvir a Cristo, seu Filho, no Evangelho; e promete, por sua audição, a virtude e a operação do Espírito Santo para a conversão e salvação.

3) Que muitos homens, por sua própria culpa, perecem: alguns, que não vão ouvir o evangelho a respeito de Cristo; alguns, que novamente caem da graça, seja por erro fundamental ou por pecados contra a consciência.

4) Que todos os pecadores que se arrependem serão recebidos em favor; e ninguém será excluído, apesar de seus pecados serem vermelhos como sangue; uma vez que a misericórdia de Deus é maior do que os pecados do mundo inteiro, e Deus se compadece em todas as suas obras.
( Concordia: The Lutheran Confessions, Appendix C, pgs. 654-658, disponível em formato digital aqui neste link)

A Confissão de Fé de Augsburgo, universal entre luteranos, quando ensina sobre o Livre Arbítrio, deixa mais claro ainda as diferenças e semelhanças entre Luteranos e demais protestantes nesta questão:

A respeito do livre arbítrio se ensina que o ser humano tem, até certo ponto, livre arbítrio para viver exteriormente de maneira honrada e discernir as coisas que a razão compreende. Sem a graça, sem o auxílio e sem a atuação do Espírito Santo, todavia, o ser humano é incapaz de agradar a Deus, de temê-lo de coração, de amá-lo ou de crer nele, ou de expulsar do coração o desejo mau ou inato, sendo isso feito pelo Espírito Santo, que é dado pela palavra de Deus. Pois Paulo diz em 1 Coríntios 2[.14]: ”A pessoa natural não capta as coisas do Espírito de Deus”

E, para que se possa reconhecer que sobre isso não se ensina novidade, eis aqui as palavras claras de Agostinho a respeito do livre arbítrio, citadas do livro III do Hipognostico: Confessamos que em todos os seres humanos há um livre arbítrio, pois todos têm entendimento e razão naturais inatos, mas não no sentido de que sejam capazes de fazer algo em relação a Deus, como, por exemplo, amar e temer a Deus de coração. É somente em relação a obras externas desta vida que eles têm liberdade para escolher coisas boas ou más. Entendo como boas aquelas que a natureza pode fazer, tais como trabalhar ou não no campo, comer, beber, visitar ou não um amigo, vestir-se ou despir, edificar, tomar esposa, dedicar-se a um ofício ou fazer alguma outra coisa proveitosa e boa. Tudo isso, entretanto, não existe nem subsiste sem Deus, mas dele e por meio dele são todas as coisas. Em contrapartida, o ser humano também pode por escolha própria praticar coisas ruins, como, por exemplo, ajoelhar-se diante de um ídolo, cometer homicídio” etc.

Aqui são rejeitados aqueles que ensinam que podemos cumprir o mandamento de Deus sem a graça e o Espírito Santo. Pois mesmo que sejamos capazes de praticar as obras exteriores do mandamento, não conseguimos praticar os grandes mandamentos no coração, a saber, termer e amar verdadeiramente a Deus, crer em Deus etc.

Filipe Melanchton. Confissão de Fé de Augsburgo. Trad. Arnaldo Schüler. In: LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Comissão Interluterana de Literatura: Ulbra, 2021, p. 60.

Mesmo assim, alguns dizem que somos sinergistas por admitirmos o uso do termo “Livre-Arbítrio”. Edward Koehler, escritor luterano também do século XX, desmente a teoria de alguns de que somos sinergistas, ele escreveu assim no sumário da Doutrina Cristã, um livro que usamos muito para ensinar a fé Luterana, conforme expressa nas Confissões do livro de Concórdia, de maneira resumida, dizendo totalmente o contrário de qualquer sinergismo, e é assim que acreditamos:

“O pelagianismo e as várias formas de sinergismo entendem que o homem natural pode, com suas próprias forças, voltar-se do pecado para o Salvador, crer nele e assim ser salvo; ou que pode, em alguma medida, cooperar com o Espírito Santo em sua conversão.. O Sinergismo é Doutrina falsa. Resulta no sentido de explicar por que alguns são convertidos e outros não. Veremos que, por mais que o homem possa ser convertido, nada pode fazer a favor de sua conversão.”

(A Summary of Christian Doctrine, in: Chapter XXII. Conversion Not the Work of Man but of God. St Louis: Concordia publishing house, 1952. Edição do Kindle, posição 2111

SALVAÇÃO POR MEIOS

Uma outra diferença entre luteranos e os demais evangélicos é a questão da salvação somente vir pelos meios da graça: Palavra de Deus e sacramentos. Ela não é imediata (sem meios) para os luteranos, como é no arminianismo e no calvinismo. Para o arminiano, a salvação é um ato de graça, aceito pela fé, e a fé é algo trabalhado diretamente no interior da pessoa, cabendo a ela aceitar ou não o trabalho do Espírito Santo nela. No calvinismo, a salvação é também pela graça de Deus, recebida pela fé, mas essa salvação e a fé são resultados do decreto de Deus, dado antes da queda (supralapsarianos) ou depois da queda (infralapsarianos) e então Deus trabalha diretamente no interior da pessoa, regenerando-a para receber a fé a salvação.

Para o luteranismo, a salvação é um ato de graça, recebido pela fé, mas não é Deus operado diretamente no interior da pessoa. A pessoa é regenerada e recebe o perdão, a graça e a fé através dos meios da graça, ou seja, a Palavra de Deus, seja pregada, assistida, lida, ouvida, na confissão e absolvição, de qualquer forma que se receba esta Palavra, e pelos sacramentos: o batismo e a santa ceia. Assim a graça, o perdão e a fé são entregues abundantemente por Deus ao seu povo. Toda vez que temos contato com a Palavra somos perdoados e salvos, quando somos batizados somos perdoados e salvos, quando tomamos a santa ceia somos perdoados e salvos. Lutero deixa bem clara sua posição sobre isso:

Deus não quer tratar conosco, seres humanos, de outra maneira senão mediante a sua palavra externa e pelos sacramentos. Tudo o que se decanta a respeito do Espírito sem essa palavra e sacramento é do diabo.
Martinho Lutero. O Artigos de Esmalcalde, Parte III:10 (1537). In: LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Comissão Interluterana de Literatura, 2021. Edição do Kindle, p. 589.

Isso seria uma obra humana, já que nós ativamente participamos do batismo, da santa ceia e da pregação da Palavra? Não. É uma obra de Deus. É Deus quem nos batiza, é Jesus que está presente na santa ceia se entregando a nós, é o Espírito Santo quem está na Palavra nos enchendo da graça. Não são obras humanas, a Palavra e os sacramentos são os meios de recebermos a fé e a graça, é Deus vindo a nós, não nós indo até Ele. Lembre-se que rejeitamos o sinergismo.

E uma pessoa que nunca foi batizada, nunca tomou santa ceia, nunca foi numa igreja ou leu a Bíblia? Se a pessoa não participou da Palavra e dos sacramentos por rejeitar isso, então ela está rejeitando a Deus e ficará sem Deus por rejeitá-Lo, mas uma pessoa que nunca teve a oportunidade, nunca teve a chance de receber os meios da graça, então se trata de uma situação extraordinária, porque os meios ordinários (comuns) não estiveram presentes para ela ser salva. Deus mesmo assim pode salvá-la. Lutero diz assim:

Se ele não tem a Palavra, eu o entrego ao julgamento de Deus sobre se ele recebe a Palavra ou não. Se ele não recebe, está perdido. No que diz respeito a nós, agora temos a Palavra de Deus e, portanto, não devemos ter nenhuma dúvida sobre nossa salvação.

É dessa maneira que devemos discutir sobre a predestinação, pois já está decidido: eu fui batizado e tenho a Palavra, e, portanto, não tenho dúvidas sobre minha salvação enquanto continuar a me apegar à Palavra. Quando tiramos os olhos de Cristo, chegamos à predestinação e começamos a brigar. Nosso Senhor Deus diz: “Por que você não acredita em mim? Me ouça ainda quando digo que você é amado por mim e que seus pecados são perdoados”. Esta é a nossa natureza: estamos sempre fugindo da Palavra.

Martinho Lutero. Table Talk. In: Luther’s Works Volume 54. Philadelphia: Fortress Press, 1967. Edição do Kindle, posições 1064 – 1071

Ou seja, se isto está na questão da predestinação, não cabe a nós julgar. Deus pode intervir sim e salvar uma pessoa, levando a Palavra até ela por meio de sonhos ou de outra forma, como temos ouvido relatos de pessoas tendo contato com a Palavra de forma sobrenatural em países onde o cristianismo é proibido e perseguido. Em casos extraordinários, Deus age extraordinariamente, sobrenaturalmente, mas não sem os meios da graça, no caso a palavra, já que o batismo e a santa ceia estão inacessíveis; mas em casos ordinários, é pela Palavra e sacramentos que recebemos a graça de Deus, a regeneração a fé e temos alimentada a nossa fé e a nossa vida cristã.

PERDA DA SALVAÇÃO

Uma diferença importante também da teologia luterana com outros ramos do protestantismo é a questão da perda da salvação, a apostasia. Os arminianos comumente (alguns pensam diferente) pensam que a salvação é mantida pelo ser humano. Se o ser humano peca voluntária e conscientemente, a pessoa perde a salvação. Já os calvinistas creem que não se perde a salvação. Se a pessoa apostatou, ou seja, perdeu a fé, é porque ela nunca esteve salva, sempre foi condenada e predestinada ao inferno. Não cremos como nenhum dos dois grupos sobre a apostasia. Cremos sim na apostasia, é bíblica, existe sim a chance de se perder a salvação, mas não é pelos nossos pecados, senão ninguém seria salvo. O único pecado que nos faz perder a salvação é a blasfêmia contra o Espírito Santo, que é a incredulidade. Quem crê e é batizado é salvo, quem não crer, será condenado (Marcos 16.16/João 3.18). Então a incredulidade é a única forma de ir para o inferno, todos os outros pecados estão ligados à incredulidade.

Nas citações das confissões luteranas e até das obras de Lutero até agora ficou claro que a perda da salvação é possível. Estamos tranquilos, porque Deus nos guarda e alimenta nossa fé pelos meios da graça, Palavra e Sacramentos, mas a partir do momento que começamos a não crer mais na Palavra de Deus e arrumarmos desculpas para os nossos pecados, ao invés de nos arrepender deles, nossa salvação está em risco. Lutero trabalha essa questão em seus escritos:

Por outro lado, é possível que venham alguns espíritos sectários […] e sustentem a opinião seguinte: Todos aqueles que em algum momento receberam o Espírito ou o perdão dos pecados, ou que em algum momento se tornaram crentes, esses, caso pequem depois disso, mesmo assim permanecerão na fé e tal pecado não lhes fará mal […] Dizem, além disso, que aquele que peca depois de receber a fé e o Espírito nunca teve de modo verdadeiro o Espírito e a fé. Já me apareceram muitas dessas criaturas insanas, e temo que esse demônio ainda esteja alojado em alguns.
LUTERO, Martinho. Os Artigos de Esmalcalde, III, 42. In: LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Comissão Interluterana de Literatura, 2021, pp. 352-353

E também:

Estas palavras: “Da graça decaístes” não devem ser consideradas fria e negligentemente, pois são muito enfáticas. Todo aquele que decai da graça perde, simplesmente, a expiação, a remissão dos pecados, a justiça, a liberdade, a vida, etc., que Cristo adquiriu para nós com sua morte e ressurreição. Por outro lado, obtém, em lugar delas, a ira e o juízo de Deus, o pecado, a morte, a escravidão do diabo bem como a condenação eterna. E essa passagem nos fortalece poderosamente e confirma a nossa doutrina a respeito da fé ou do artigo da justificação…
– Martinho Lutero. Comentário à Epístola aos Gálatas. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero v. 10 [e-book]. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ed. ULBRA, 2017. v. 10. Edição do Kindle, posições 9091-9099

UMA RESSALVA

Tenho que admitir que realmente existem sinergistas e pessoas com entendimentos soteriológicos diferentes do confessional entre nós, assim como existem presbiterianos e anglicanos sinergistas, mas os luteranos confessionais seguem as confissões luteranas e mesmo os luteranos não confessionais também têm as confissões como estandarte de fé a respeito da salvação, mesmo que às vezes sejam críticos quanto a isso.. Os calvinistas e arminianos que se opõem aos luteranos, ou que querem puxar o luteranismo para o lado deles. Certos calvinistas mais maldosos dizem que Melanchton, em sua velhice, quando se tornou sinergista, é o responsável pela nossa teologia luterana, o que não é verdade; os escritos de Melanchton aceitos como convergência doutrinária entre nós são somente os constantes no Livro de Concórdia, que foram supervisionados por Lutero e outros reformadores. Na verdade, entre nós, Melanchton, em sua velhice, foi até acusado de cripto-calvinista e de sinergista, pela ênfase no terceiro uso da lei e ter sugerido reformas mais calvinistas na liturgia e sacramentos, em nome da diplomacia, e pelo fato de ele ter abraçado o sinergismo após escrever a Confissão de Augsburgo e sua Apologia, ideias essas que rejeitamos, conforme mostrado nas confissões, sobre assuntos que não queremos fugir das Escrituras em nome de propostas calvinistas ou sinergistas. E lembre-se que Melanchton morreu muito antes de existir arminianismo, o sinergismo dele era diferente do sinergismo arminiano.

RESUMINDO TUDO

O Calvinismo e o Arminianismo dividiram suas crenças soteriológicas fundamentais em 5 pontos (calvinismo) ou 5 teses (arminianismo), no século 17, ou seja, no século seguinte à Reforma, sem relação com o luteranismo, que tem suas confissões datadas do século 16. Sei que nem todos os calvinistas seguem a TULIP e nem todos os arminianos seguem as teses remonstrantes, mas é o que estes movimentos têm de oficial sobre a soteriologia e é o que eu posso trabalhar em cima a critério de comparação. Os luteranismo, por ser um movimento anterior a estes dois, mesmo tendo que lidar com sinergistas e calvinistas posteriormente, não deu uma resposta oficial aos 5 pontos destes dois movimentos, mas nossas crenças bíblicas oficiais, conforme expressas no Livro de Concórdia, podem nos dar uma direção para compararmos as crenças luteranas com as crenças destes dois movimentos. Nesta comparação, se vê que nessa questão não somos nem calvinistas, nem arminianos. Não poderíamos ser, porque o luteranismo é anterior a estes dois movimentos, mas a doutrina luterana não assume nenhuma das duas posições sobre a questão da predestinação, não “compra” nenhum dos dois “pacotes” doutrinários, mas desde antes preferiu deixar essa questão como as Escrituras a declaram e aceitar o paradoxo e as dificuldades que o paradoxo traz.

Pensando em facilitar, e correndo riscos inevitáveis de fazer descrições imprecisas, eu fiz uma tabela bem resumida das perguntas mais recorrentes que eu recebo sobre a visão soteriológica luterana, fazendo uma comparação bem resumida das três vertentes que eu trabalhei aqui no texto nos 5 pontos soteriológicos principais destes movimentos com o luteranismo e ficou assim:

tabela soteriologia
Um resumo das 3 principais soteriologias protestantes

A PRIORIDADE ENTRE LUTERANOS

Entre luteranos a doutrina da predestinação não é enfatizada, por isso talvez alguns não se atentam muito a ela e chegam a conclusões sinergistas do processo de salvação, e sei que na época da reforma e pós reforma isso foi muito discutido entre calvinistas, havendo inclusive a cisão nas regiões reformadas, como Holanda, Inglaterra e EUA entre “Calvinistas” e “arminianos”, mas entre nós a realidade é diferente. Na teologia luterana a doutrina da predestinação está presente e muito bem explicada, mas, seguindo o Conselho do próprio Lutero, não é prioridade.
Lutero disse:

“A disputa sobre a eleição deve ser evitada completamente… Eu esqueço tudo sobre Cristo e Deus quando eu me encontro nestes pensamentos e de fato chego ao ponto de imaginar que Deus é desonesto. Nós devemos ficar na Palavra, na qual Deus é revelado para nós e a salvação é oferecida, se nós cremos nele. Mas ao pensar sobre predestinação, nós esquecemos de Deus… Contudo, em Cristo estão escondidos todos os tesouros (Cl 2:3); fora dele tudo está trancafiado. Então, nós deveríamos simplesmente recusar debater sobre a eleição.

Tal disputa é tão irritante para Deus que ele instruiu o Batismo, a Palavra pregada, e a Ceia do Senhor para agir contra a tentação de se engajar nisto. Nestas coisas vamos persistir e constantemente dizer: eu sou batizado e acredito em Jesus. Eu não me importo nem um pouco com as disputas sobre a predestinação.”
– Martinho Lutero. Apud Ewald Plass. What Luther Says – An Anthology, Volume 2. St. Louis – Missouri: Concordia Publishing House: 1959, p. 456. Apud Don Matzat. Martin Luther and the Doctrine of Predestination. Issues, Etc. Journal – Vol. 1. No. 8. October 1996. Disponível em https://www.issuesetcarchive.org/issues_site/resource/journals/v1n8.htm. Acesso em 20/05/2018.

Lutero comenta o perigo de ficar se especulando sobre esse tema da predestinação:

“Se eu estou predestinado, serei salvo, tanto faz se eu fizer o bem ou o mal. Se eu não estou predestinado, vou ser condenado, independentemente das minhas obras. “. . . Se as afirmações são verdadeiras, como os que defendem isso acreditam, a encarnação do Filho de Deus, o Seu sofrimento e ressurreição, e tudo o que Ele fez para a salvação do mundo são eliminados completamente. Para que serviu os profetas e toda a ajuda Sagrada Escritura? Para que servem, então, os sacramentos?

Estas são ilusões do diabo, com as quais ele tenta levar-nos a duvidar e desacreditar, embora Cristo veio a este mundo para nos tornar completamente firmes. Eventualmente o desespero toma conta e acontece o desprezo para com Deus, a Bíblia Sagrada, o Batismo, e por todas as bênçãos de Deus através das quais Ele nos quis nos firmar contra a incerteza e dúvida…

– Martinho Lutero. Lectures on Genesis Chapters 26-30. Luther’s Works Vol 5. St. Louis: Concordia Publishing House, 1968 p.32 Tradução: Thiago Surian

Para Lutero e a Ortodoxia Luterana da Fórmula de Concórdia, não temos que ficar nos preocupando com este tema, pois a salvação não está em nós, mas está fora de nós, não é evidenciada por obras, no sentido de sustentada, como se só pudéssemos ter consolo e certeza de nossa salvação se tivermos uma fé ortodoxa, obras morais exemplares e outras coisas em nós, como muitos afirmam ao se preocuparem com a eleição, mas a operação da nossa salvação se dá fora de nós, pela Palavra e pelos sacramentos. Pelo batismo temos a certeza da eleição, assim como pelo corpo e o sangue de Jesus recebidos na santa ceia e também por ouvir a Palavra de Deus. É assim que, por estes meios externos que recebemos a fé e podemos ter a certeza que somos salvos, e que isso se dá pelo poder e pela graça de Deus, não por nossas obras, que Ele nos escolheu e nos ama.

Por isso é melhor deixar as especulações sobre a predestinação de lado e se preocupar com coisas mais importantes, como a suprema arte do cristão:

“Fazer essa diferenciação entre Lei e Evangelho é a arte suprema no cristianismo, que todos os que se gloriam ou adotam o nome ‘cristão’ deveriam saber e dominar” – – Martinho Lutero (Weimarer Ausgabe {WA} 36, 9, p. 28-29)

CONCLUSÃO

Eu escrevi este texto por causa das dúvidas sinceras e também para apresentar a doutrina luterana para quem não conhece muita coisa a respeito deste assunto. Os Calvinistas e os arminianos são nossos irmãos amados, como são os católicos e ortodoxos, e não há sentido nenhum para um conflito entre nós, porém a fé é uma questão individual, não podemos sacrificar nossa fé no altar da amizade. Cremos assim, de maneira monergista, mas sem determinismo, sem racionalismo e sem “elitismo”, porém temos outras prioridades em nossa doutrina e tratamos dos assuntos conforme a necessidade e contexto, e temos muito mais coisas para tratar e trabalhar no que foi revelado em Cristo e descrito na Palavra de Deus, então é perda de tempo especular sobre a vontade oculta de Deus acerca da predestinação.

Cremos na predestinação para a salvação, não para a condenação. Deus nos elegeu em Cristo, pela cruz de Cristo, e não cabe a nós entender os detalhes da predestinação, apenas cremos que somos salvos pela graça de Deus, por meio da fé e para isso temos os meios que Deus instituiu para termos a certeza da nossa salvação, a Palavra e os sacramentos, não nossas obras ou “santidade”, mas a fé em Cristo que recebemos pela Palavra e Sacramentos. Cremos que a graça de Deus é para o mundo inteiro, não cremos em “duas graças”, uma para os eleitos e outra para os demais humanos (graça comum), mas cremos numa graça só, a mesma em que Deus ama a todos os seres humanos e cuida de todos e que salvará por essa graça a todos os que creem em Jesus, mesmo sendo pecadores.

POST SCRIPTUM (PÓS TEXTÃO)

Já me antevendo: Pela experiência, já sei que muitos calvinistas e arminianos não gostam que “gente de fora” comente o que eles acreditam, com muitos luteranos também é assim. Então acredito que vai ser inevitável que alguns digam que não fiz um bom retrato das crenças deles.

Não é um retrato fiel, admito. É um resumo. E todo resumo fica faltando muita coisa e se torna impreciso em outras. Não brigue comigo deixei alguma coisa de fora ou te deixei descontente com alguma forma imprecisa que eu tenha apresentado algum ponto. Eu teria que fazer um trabalho acadêmico para ser mais acurado, escrever um livro, levar muito tempo de pesquisa e coleta de material. Eu só quis fazer um post de blog, o que você pode contestar, questionar, fazer sua própria pesquisa e conferir pelas minhas citações e outras bibliografias a acuracidade do que escrevi aqui. Eu procurei não modificar nada do que trabalhei, mas posso ter falhado em um outro ponto e estou aberto a sugestões de revisões do texto.

E também talvez você, calvinista ou arminiano, pense diferente em algum destes pontos, mas eu resumi o que é “oficial”, o que instituições calvinistas e arminianas importantes e reconhecidas dentro destes movimentos apresentam como sendo explicação “oficial” dos temas que abordei na comparação. Outro ponto é que, como relatei na minha pequena autobiografia, eu fui adepto por muitos anos tanto do arminianismo popular, como do calvinismo de TULIP. Acho que pude aprender alguma coisa nestes movimentos para interpretá-los, né?

Se quiser conhecer mais diferenças entre luteranos, reformados e demais evangélicos, segue o link para o artigo do professor Paulo W. Buss, como prometido. Clique no título em azul:

A Identidade Luterana Frente a Outras Teologias (calvinismo e arminianismo)

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

Abaixo mais bibliografia para você pesquisar sobre o assunto:

Calvinismo:
Os Cânones de Dort (Sobre o Pecado original, Expiação Salvação)

Os cânones de Dort no site da Igreja Presbiteriana do Brasil

Sobre Graça:

Graça Comum em Artigo Acadêmico do Mackenzie

A Confissão de Fé de Westminster (Sobre Eleição)

Download em PDF da Confissão de Westminster no site da Igreja Presbiteriana do Brasil

Arminianismo
Creeds of Christendom, Volume III, do autor Philip Schaff, livro impresso que eu tenho. (Sobre Pecado Original, Eleição, Expiação, Salvação)
O mesmo conteúdo (eu conferi) pode ser encontrado aqui:

Biblioteca de Teologia online dos EUA, com citação fiel dos artigos do arminianismo (remonstrância)

Artigos de fé da Igreja Metodista Unida (Sobre a Graça). Foi John Wesley, principal nome do movimento metodista que culminou nesta denominação, após a morte dele, quem resgatou o arminianismo e foi a través da Igreja Metodista, de onde surgiram movimentos como o pentecostalismo, Adventismo e outros, que o arminianismo se tornou o entedimento soteriológico mais popular entre os protestantes.

http://www.umc.org/what-we-believe/our-wesleyan-heritage

Luteranismo.
Aqui é mais fácil. No luteranismo confessional, tudo converge no Livro de Concórdia:

Livro de Concórdia em formato digital e Livro de Concórdia em português (em papel, para comprar)

As citações aqui utilizadas do Livro de Concórdia são dessa versão em português

Caso haja curiosidade e pouco tempo para ler tanta coisa, indico o “Sumário da Doutrina Cristã”, que resume as crenças expressas no Livro de Concórdia. Para comprar em português:

http://www.editoraconcordia.com.br/produtos/produto.php?id=1736

Para comprar para o kindle, mas só em inglês:

http://www.amazon.com.br/Summary-Christian-Doctrine-Presentation-Teachings-ebook/dp/B0050PQZTU/ref=sr_1_2?ie=UTF8&qid=1445589651&sr=8-2&keywords=Summary+of+christian+doctrine