Lutero e o anit-semitismo

Minha Boa Experiência com Judeus

Muitas vezes surgem as famosas declarações de Lutero contra os judeus para se rejeitar o protestantismo, ou o Luteranismo. Em postagens da minha página (Lutero Reflexivo), em meus perfis pessoais nas redes sociais, não raro aparece alguém trazendo essas declarações com dúvidas ou provocações sobre isso. Por isso resolvi registrar aqui no meu blog a minha resposta ao assunto. Já adianto que não é minha intenção defender aonde Lutero errou, nem defender o antissemitismo de forma alguma, mas trazer um pouco de reflexão a respeito.

Eu tenho uma história pessoal muito positiva com os judeus. Fui ajudado por judeus num momento muito difícil da minha vida e eles me apresentaram a religião, o povo e os costumes deles. Até hoje tenho muita coisa deles que curto bastante, artistas israelenses como Ophra Haza, Amasefer, Orphaned Land, Shai Gabso, etc, estão nas minhas playlists com frequência. Sempre que tenho um tempinho leio com interesse o Sidur, Machzor, que são livros de orações judaicos e com lindas preces que às vezes eu mesmo as rezo por tão lindas que são. No meu braço tenho tatuagens em hebraico, tenho camisetas com referências à cultura judaica trazidas de Israel de coisas daquele país, me identifico e admiro bastante a cultura e as tradições deste povo e mesmo não sendo judeu já quase apanhei na rua algumas vezes por neonazistas e outras gangues de extrema direita por ter cara de judeu, vestir coisas israelenses e ter tatuagens com alusão ao judaísmo. Sou descendente de italiano e também de africano, por isso tenho a pele morena e o nariz grande, não raro me confundem com alguém do oriente médio.

Falo tudo isso para mostrar que tenho muita simpatia pelo povo judeu e seus costumes, não vou aqui falar mal desse povo, mas fazer uma reflexão luterana amigável aos judeus. Acompanhe o meu texto sem pensar que serei antissemita ou algo assim.

Lutero não era mesmo perfeito

É importante frisar que Lutero não é o Messias do Protestantismo, nem do Luteranismo. Jesus é nosso Messias. Lutero não é o referencial de perfeição que buscamos. Jesus é nosso referencial de perfeição. Lutero não era perfeito.. Na Bíblia, os heróis da fé tinham sérios problemas morais, alguns exemplos: Davi matou um homem muito bom e leal para ficar com a esposa dele. Moisés matou um egípcio por uma briga política. Pedro negou Jesus 3 vezes. Enfim, são vários os casos de heróis da fé que não são nenhum referencial de perfeição. E Lutero é mais um nome nessa lista de imperfeitos que temos como referencial de fé, mas nem sempre de comportamento.

A fé cristã não é sobre perfeição, é sobre redenção. Como dizem uns amigos: “No cristianismo é proibido pessoas perfeitas”. Afinal, quem precisa do médico Jesus são os doentes, não os saudáveis. Por isso temos nos cristãos e hebreus do passado exemplos a nos inspirar e seguir e também exemplos nos mesmos a evitar e reprovar.

Um Paralelo Entre Lutero e os Dias de Hoje

No caso de Lutero, ele teve muitos erros, era filho de sua época, como nós somos da nossa. Há cristãos sinceros hoje dentro do contexto atual brasileiro que pregam o ódio contra quem vota num determinado partido político. Há cristãos sinceros que resumem o cristianismo a uma lista de regras de usos e costumes sobre como vestir, falar, etc. Há cristãos sinceros que se posicionam de uma forma imoral em muitos assuntos. Há cristãos sinceros que são interesseiros financeiramente e acreditam na ilusão que Deus quer dar prosperidade material para eles. Há cristãos sinceros que são levados a acreditar que a Bíblia não é a Palavra de Deus. Há cristãos sinceros que bradam com vontade que “bandido bom é bandido morto”. Isso tudo são questões de nossa época. E os cristãos que assim agem não são necessariamente apóstatas, mas ao examinarmos estas posturas com a Palavra de Deus vemos que não estão agindo corretamente nessas questões.

Assim também existem questões em todas as eras em que os cristãos nem sempre se posicionam de maneira satisfatória e, na época de Lutero, a questão dos judeus era uma delas. A igreja católica romana perseguia muitos os judeus e Lutero no começo foi favorável aos judeus e contra essa perseguição romana, mas a história mostra que Lutero se posicionou mal ao escrever o livreto “Sobre o judeus e suas mentiras”, interpretando mal essa questão dos judeus em sua época, mesmo sendo um cristão sincero.

O “Antissemitismo” de Lutero

Na época de Lutero, o “antissemitismo” (termo mais recente para o preconceito contra os judeus, na época de Lutero não existia este termo) era um pensamento popular na Alemanha e em toda a Europa e a história mostra que Lutero variou entre o antissemitismo e a defesa dos judeus, assim como o apóstolo São Pedro também cometeu erros grosseiros por causa de política, quando variava entre a defesa dos gentios e o ataque aos gentios para agradar os judeus, o que o apostolo São Paulo viu e meteu o dedo na cara dele dizendo que ele estava errado em agir assim (Gl 2.11-16).

Lutero também foi muito questionado e resistido pelos outros reformadores e adeptos da Reforma na Alemanha e na Suíça por certas posturas dele, como quando ele pediu para retirar Tiago, 2 Pedro, Apocalipse e outros livros do Novo Testamento, baseado em alguns pais da Igreja, entre eles Eusébio de Cesareia, que defendiam que esses livros não eram inspirados. Depois Lutero viu a burrada que defendia e voltou atrás, por ter sido resistido acerca disso. Também quando ele defendeu a poligamia no caso de um nobre alemão que queria se casar novamente; ele dizia que Deus odiava o divórcio e tolerava até a poligamia, que era um “mal menor” que o divórcio. Também foi resistido e teve que voltar atrás nessa posição. Sobre o antissemitismo, sim, Lutero teve declarações muito erradas sobre os judeus e não vou aqui defender ou tentar forçar algum outro ponto de vista.

Não defendo o sentimento ruim pelos judeus que Lutero manifestou em muitos momentos, nem outros erros de reformadores e adeptos da Reforma nos séculos seguintes, como a guerra de Zuínglio contra os católicos; a morte de Serveto por heresia sob a influência de Calvino; o afogamento de anabatistas (inclusive crianças) por zuinglianos no lago Genebra, as “Teocracias” puritanas na Inglaterra e nos EUA, que matou índios e tantos inocentes sob acusação de “heresia”, “imoralidade” ou “bruxaria”. Não posso defender essas coisas, como a Bíblia não defende os erros dos heróis da fé e tudo isso é um exemplo para não seguirmos.

Mesmo assim, os pecados de nossos irmãos não invalidam a fé protestante para mim, bem como não invalidam a minha religião cristã, porque não ensinamos a perfeição, sim a Redenção, somente pela graça, por meio da fé (Ef 2.8-9). E por essa fé podemos melhorar aonde os outros falharam para que tenhamos melhores obras que os cristãos que pecaram no passado (Ef 2.10), matar nosso velho Adão todos os dias para beneficiar o nosso próximo, tendo esses exemplos ruins como mostras da nossa responsabilidade cristã em não agir mal, nem se omitir diante do mal.

Um Problema Político Também

Parece que as declarações infelizes de Lutero foram frutos do ambiente político de sua época, e na época política e religião não eram separados da forma como temos hoje. Mesmo Lutero defendendo a doutrina dos dois reinos e a separação entre esses regimentos (a doutrina luterana dos dois reinos promove um tipo de separação entre Igreja e Estado. Resumindo, é o seguinte: o regimento da mão direita do Reino de Deus éo regimento onde Deus controla as questões espirituais, aonde estão a Igreja, e as questões concernentes à fé, aqui as Escrituras são nossa orientação (Lei) e falam da Redenção (Evangelho); e o regimento da mão Esquerda do Reino de Deus é onde estão as coisas concernentes aos assuntos do mundo, como o Estado, a vida familiar, a cultura, etc, este regimento de Deus onde Ele cuida do mundo todo é administrado pelos homens pela razão, não pelas Escrituras), ainda assim, Lutero dava muitos pitacos na política, como nós cristãos fazemos hoje também, sendo alguns pitacos muito infelizes, como no caso dos judeus e outros casos de outros protestantes, como vimos acima.

Assim como vemos hoje cristãos pregando o ódio por causa de política no Brasil, nessa animosidade “Esquerda x Direita” em que vivemos hoje, onde muitos exageram em sentenças sobre o outro lado, desejando o mal a quem vota em certo partido político ou é adepto de certa vertente política, dizendo que são “lixo”, “traidores da cruz de Cristo”, “bandidos”, e muitos falando até em morte, esterilização ou perda de todos os seus direitos civis por causa de política, por ser de Esquerda ou de Direita, assim era com as questões da época, também havia fanatismos e exageros. O ambiente político na época também proporcionou essas declarações exageradas e maldosas de Lutero sobre os judeus, pois ele queria os judeus adeptos da fé cristã e como isso não ocorreu durante a Reforma, quando no começo ele defendia a liberdade dos judeus, tão perseguidos por Roma na época, ele ficou com raiva dos judeus e queria que se agisse contra eles.

O contexto não “justifica”, mas “explica”. Como hoje o ambiente político de roubalheira e injustiças no Brasil não justifica o ódio que alguns cristãos manifestam aos adeptos de algum partido ou vertente política, mas explica o sentimento de revolta e insatisfação, que é o contexto desse exagero por parte de alguns cristãos que aderem ao ódio, paranóia e proferem esses discursos inflamados infelizes de hoje. O contexto mostra o que motiva os exageros, mas não justifica o exagero cometido.

Há também o fator teológico da época de Lutero, pois desde os pais da Igreja os judeus são chamados de “inimigos de Cristo”, e isso era entendido por muitos cristãos que os judeus seriam nossos inimigos, o que contradiz o ensino bíblico que não é contra carne ou sangue que temos que lutar (Ef 6.12), mas este ponto não me parece ser o fator principal, eu vejo o argumento teológico de Lutero contra os judeus motivado mais por uma questão política do que religiosa, mas existe um debate muito grande sobre isso que eu não quero encerrar aqui. A idéia é mais trazer uma perspectiva mais acessível sobre essa mancada de Lutero.

Variações de Lutero

Nos escritos abaixo, vemos Lutero também defendendo os judeus, daí minha conclusão que seu antissemitismo não parece ter sido algo primariamente religioso e sim político, pois nos púlpitos ele também dizia coisas boas sobre os judeus, diferente dos antissemitas que não vêem coisas boas, porém querem a eliminação dos judeus.

Mais abaixo dos textos de Lutero, você ainda vai conferir as declarações de igrejas luteranas pelo mundo sobre as falas infelizes de Lutero, para provar de uma vez por todas que nós luteranos não temos problemas com os judeus e eles são muito bem vindos entre nós (inclusive há Igrejas Luteranas em Israel).

Confira Lutero mesmo falando:

“Agora eu vou para casa, e talvez eu nunca vou pregar para vocês novamente, eu abençoei e orei para que você fique sempre perto da Palavra de Deus … Eu vejo que os judeus ainda estão entre vocês. Agora temos que lidar com eles de uma forma cristã e tentar trazê-los para a fé cristã para que possam receber o verdadeiro Messias, que é a sua carne e sangue e da descendência de Abraão, embora eu acho que o sangue judeu é insípido e selvagem ultimamente. Mesmo assim, eles devem ser convidados a voltar-se para o Messias e serem batizados nele … Se não, então não devemos aprovar o abuso diário e as blasfêmias contra Cristo que eles fazem. Eu não devo e você não deve ser um participante dos pecados dos outros. Deus sabe que eu tenho pecados suficientes que são meus mesmo para lidar, mas se eles desistirem da usura (super valorização de preços e juros que Lutero denunciava que eles praticavam na época) e receberem a Cristo, vamos recebê-los de bom grado como nossos irmãos… mesmo quando chamam Maria de prostituta e Jesus de seu filho bastardo, ainda devemos exercer amor cristão para com eles, para que eles possam ser convertidos e receber o Senhor… isso eu digo a você como seu Pastor, para não ser participante dos pecados dos outros. Se eles se converterem de suas blasfêmias temos de bom grado que perdoá-los, mas se não, não devemos ficar na companhia deles

– Último comentário de Martinho Lutero sobre os judeus, no último sermão dele, horas antes de morrer. “[WA 51 195-6 como citado em:. Gordon Rupp, Martinho Lutero e os judeus (London: O Conselho de cristãos e Judeus, 1972), 21].

Em outro momento, Lutero também disse:

“Talvez eu consiga atrair alguns judeus para a fé cristã, pois nossos tolos, os papas, bispos, sofistas e monges… até agora os têm tratado tão mal que… se fosse judeu e visse esses idiotas cabeças-duras estabelecendo normas e ensinando a religião cristã, eu preferiria ser um porco a ser cristão. Pois esses homens trataram os judeus como cães, e não como seres humanos.”

– Martim Lutero: That Jesus Christ was born a Jew [Que Jesus Cristo Nasceu Judeu], reimpresso em Frank Ephraim Talmage, ed.Disputation and Dialogue: Readings in the Jewish-Christian Encounter(Nova York: Ktav/Anti-Defamation League of B’nai B’rith, 1975), p. 33.

Como vemos, Lutero parece ter variado em relação aos seus pensamentos sobre os judeus e lendo suas declarações antissemitas (que não vou reproduzir aqui porque também as condeno, mas nesse link aqui da Deutsche Welle tem um artigo em português tratando do assunto), parece que sua opinião era mesmo política, mas no final de sua vida ele parece ter reconsiderado suas posições extremistas. Mesmo assim, as declarações de Lutero contra os judeus foram e são usadas como desculpa por grupos anti-semitas e uma reflexão sobre elas é necessária; afinal, o Messias do luteranismo e do protestantismo é Jesus, é somente Ele que temos como inerrante, não Lutero ou qualquer outro. Não temos problema em discordar de Lutero.

Luteranos como Sasse e Bonhoeffer, na época do nazismo, em meio à adesão ou tolerância com a ideologia supremacista, fizeram os questionamentos bíblicos necessários sobre sentimentos de superioridade ou ódio contra o próximo e se posicionaram contra os extremismos ideológicos contra os judeus, são exemplos de luteranos contra o nazismo. Inclusive Bonhoeffer, pastor luterano, foi martirizado, morto pelo regime nazista por ter se levantado contra o nazismo. Nós também quando somos acusados pela responsabilidade histórica de contribuição ao sofrimento do povo judeu precisamos fazer as mesmas reflexões bíblicas e concluir que o amor ao próximo é mandamento irrevogável, não importando a desculpa e o argumento que dão para relativizar e dizer que não precisamos amar alguém ou algum grupo de pessoas.

Ainda nos dias de hoje os luteranos pelo mundo fazem reflexões sobre as declarações extremistas de Lutero sobre os judeus. Encerro meu texto com as declarações que igrejas luteranas pelo mundo deram a respeito:

“Ao mesmo tempo em que a Igreja Luterana – Sínodo de Missouri detém Martinho Lutero em alta estima por sua proclamação ousada e clara articulação dos ensinos das Escrituras, também lamenta profundamente as declarações feitas por Lutero, que expressam uma atitude negativa e hostil para com o povo judeu. À luz das muitas declarações positivas e de carinho sobre os judeus feitas por Lutero ao longo de sua vida, não seria justo com base nestas poucas lamentáveis (e atípicas) declarações negativas, para caracterizar o reformador como “um anti-semita raivoso. “A Igreja Luterana Sínodo de Missouri, no entanto, não pretende “desculpar” estas declarações de Lutero, mas denunciá-las (sem denunciar a teologia de Lutero).”

– Igreja Luterana Sínodo de Missouri, EUA.

A Igreja Evangélica Luterana na América (ELCA) rejeita “Discursos de Lutero anti-judaicos e as recomendações violentas de seus últimos escritos contra os judeus”, e a “apropriação [desses discursos]… por anti-semitas modernos para o ensino de ódio para com o judaísmo ou para o povo judeu em nossos dias.”

– Evangelical Lutheran Church in America

“Não apenas os cristãos individuais, mas também as nossas igrejas compartilham a culpa do Holocausto / Shoah. … nós, como cristãos protestantes estamos em dívida pelo final dos escritos de Lutero e sua demanda por expulsão e perseguição dos judeus. Rejeitamos o conteúdo estes escritos. “

– Igreja Evangélica da Áustria (que concentra as igrejas luterana e reformada em si)

“É imperativo para a Igreja Luterana, que se sabe ser grata ao trabalho e à tradição de Martinho Lutero, de levar a sério também as suas declarações anti-judaicas, a reconhecer a sua função teológica, e refletir sobre suas consequências. … a Igreja Luterana da Baviera … se reconhece como co-responsável por pensamentos e ações anti-semitas que tornaram possível ou pelo menos tolerados os crimes do “Terceiro Reich” contra crianças, mulheres e homens de origem judaica. Embora na Igreja Luterana da Baviera existiam pessoas que reconheceram o problema (por exemplo, Wilhelm von Pechmann, Karl STEINBAUER, Friedrich Seggel, Wilhelm Geyer), a Igreja como um todo não levou a sério a chamada questão Judaica como uma problema teológico.

– Sínodo Luterano da Baviera (Alemanha)