Com muita frequência eu recebo perguntas sobre qual o posicionamento de Lutero sobre a Predestinação. Na minha época de graduação fiz um trabalho para a ULBRA (Universidade Luterana do Brasil), onde me formei em Teologia, trabalhando as diferenças entre o pensamento de Lutero sobre a predestinação e suas diferenças com o Calvinismo e o Arminianismo.

Pensando nas inúmeras perguntas que recebo sobre o tema, disponibilizo aqui no meu Blog parte do trabalho de pesquisa que eu fiz sobre o assunto, modificado para o leitor do meu blog entender melhor a questão, para quem quiser conhecer melhor a posição de Lutero sobre o assunto. Sem mais delongas, segue:

Predestinação em Lutero em contraste com o calvinismo e o arminianismo.

O Calvinismo

Encontramos no calvinismo a doutrina da dupla predestinação. Muitos calvinistas negam que creem na dupla predestinação, porém há no calvinismo a doutrina da expiação limitada, que diz que Deus enviou Cristo para expiar o pecado apenas dos eleitos, enquanto já de antemão rejeitou os demais para a perdição eterna. A discussão no calvinismo fica sobre quando foi esse “antemão”. Existe a posição supralapsariana, que diz que Deus escolheu a uns e rejeitou a outros antes da queda do homem, e existe a posição infralapsariana, que diz que a predestinação de uns para a salvação e outros para a condenação aconteceu após a queda do homem em pecado, portanto os condenados são condenados em virtude da queda, para os infralapsarianos. Porém ambos acreditam na “Expiação Limitada”.

A doutrina da “Expiação Limitada” foi estabelecida no Sínodo de Dort, que aconteceu em Dordrecht, na Holanda, entre 1618 a 1619, e debateu a controvérsia arminiana, quando os seguidores de Jacobus Arminius queriam uma revisão da doutrina da predestinação e ensinar o sinergismo contra o monergismo calvinista. Com isso, os calvinistas reunidos nesta assembleia afirmaram cinco pontos que hoje são conhecidos como os cinco pontos do calvinismo, que são: depravação total, eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança dos santos. Estes pontos, em inglês, formam o acróstico TULIP, que não é defendido por todos os calvinistas, mas as vertentes calvinistas mais populares no Brasil adotam a TULIP como expressão de fé calvinista. Nos cânones do sínodo de Dort, que são as considerações e conclusões desta assembleia, é dito no capítulo 1:6:

Deus dá nesta vida a fé a alguns enquanto não dá a fé a outros. Isto procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que Ele “…faz estas cousas conhecidas desde séculos.” e que Ele “faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade…” (Atos 15:18; Ef 1:11). De acordo com este decreto, Ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, Ele deixa os não-eleitos em sua própria maldade e dureza. E aqui especialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa distinção entre os homens que estão na mesma condição de perdição. Este é o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus.

Os Cânones de Dort. Disponível em:

http://www.monergismo.com/textos/credos/dort.htm (Acesso em 20/05/2018)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sínodo_de_Dort (Acesso em 20/05/2018)

Mesmo antes do Sínodo de Dort, Calvino já fazia afirmações que dão a entender a dupla predestinação, como em suas Institutas da Religião Cristã, ou Tratados da Religião Cristã, onde ele declara a “Eterna Eleição, pela qual Deus a uns predestinou para a salvação, a outros para a perdição” (Calvino, 2006. Local do Kindle 8157). Ele explica:

Portanto, se alguém nos acometer com palavras desta natureza: Por que Deus no início predestinou alguns à morte, os quais, como ainda não existissem, não podiam ainda ser merecedores de juízo de morte, à guisa de resposta lhes indaguemos, por nossa vez, se pensam que Deus deve algo ao homem, caso o queira estimar por sua própria natureza? Como estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos deixar ser odiosos a Deus, e isso não por crueldade tirânica, mas por razão de justiça mui equitativa.

CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. São Paulo: Editora Unesp, 2009. v. 3. Edição do Kindle, posições 8753-8757..

Convém também olhar para a Confissão calvinista de Westminster, que afirma no capítulo III:III:

“Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para a morte eterna”.

Já o autor calvinista R. C. Sproul (2018) afirma que “o decreto de Deus da reprovação, dado em luz da queda, é um decreto de justiça, não de injustiça”.

Mesmo que muitos calvinistas não creiam na dupla predestinação, a doutrina da “expiação limitada”, que insinua a dupla predestinação, está presente no calvinismo e, apesar de muitos calvinistas interpretarem de modo diferente, encontramos declarações que mostram a expiação limitada em documentos confessionais do calvinismo e em autores calvinistas. E muitos dizem que Lutero acreditava na “Expiação Limitada”. Será Verdade? Veremos neste breve estudo.

O Arminianismo

Já os arminianos creem na eleição segundo a presciência divina. Segundo este pensamento, Deus anteviu a fé no homem e elegeu conforme a fé do indivíduo (Jackson, 2018), Ele viu que a pessoa iria crer na mensagem e por isso a elegeu, não por decreto, mas por previsão, ou presciência. Creem que Deus concede a graça dele a todos os homens, mas os homens têm o poder de aceitar a essa graça pelo seu livre-arbítrio, por isso se enquadra no sinergismo (sinergismo = obra de mais de uma pessoa). O principal nome do arminianismo, depois de Jacobus Arminius, foi John Wesley. A Igreja Metodista foi fundada baseada nos princípios doutrinários pregados por John Wesley e no site da United Methodist Church lemos:

Wesley entendeu a graça como a presença ativa de Deus em nossas vidas. Essa presença não depende de ações humanas ou de resposta humana. É um presente – um presente que está sempre disponível, mas que pode ser recusado.

A graça de Deus desperta dentro de nós o desejo de conhecer a Deus e nos capacita a responder ao convite de Deus para estar em um relacionamento com Deus. A graça de Deus nos permite discernir as diferenças entre o bem e o mal e nos possibilita escolher o bem…

United Methodist Church: http://www.umc.org/what-we-believe/our-wesleyan-heritage (Acesso em 20/05/2018)

Sendo assim, se trata de uma visão sinergista da salvação, onde Deus escolhe as pessoas, mas elas precisam responder a essa escolha, se querem ou não ser salvas.

Lutero e a Predestinação

Lutero tinha uma visão diferente dessas duas correntes apresentadas até aqui. Era uma visão monergista, mas diferente da “Expiação Limitada” dos calvinistas. Muitos calvinistas pegam o comentário de Lutero aos Romanos para dizer que Lutero tinha uma visão igual a deles a respeito da predestinação, onde se lê:

O segundo [argumento] é que “Deus deseja que todos os homens sejam salvos” [1 Tm 2.4] e que entregou seu Filho em favor de nós seres humanos, os quais ele criou por causa da vida eterna. E, de maneira semelhante: todas as coisas existem por causa do ser humano, mas ele próprio existe por causa de Deus, de sorte que nele possa deleitar-se, etc. Esses, como também outros argumentos são tão fracos quanto o primeiro. Essas sentenças só podem ser compreendidas com referência aos eleitos, como diz o apóstolo, em 2 Tm [2.10]: “Tudo por causa dos eleitos”. Pois, num sentido absoluto, Cristo não morreu por todos, visto que ele diz: “Esse é o sangue que é derramado por vós” e “por muitos” – ele não diz: por todos – “para a remissão dos pecados” [Mc 14.24; Mt 26.28; Lc 22.20].

O quarto [argumento]: por que então ele ordena fazer aquilo que não quer que seja feito por aquelas pessoas? E o que é mais grave: ele endurece a vontade, de sorte que as pessoas preferem agir contrariamente à lei. Portanto, o motivo das pessoas pecarem e serem condenadas, está em Deus. Este é o argumento mais forte e, também, o principal. E é, principalmente, a ele que o apóstolo se refere quando diz que Deus quer que assim seja e que, ao querê-lo, ele não é injusto, pois todas as coisas são suas, assim como a argila é do oleiro. Portanto, ele concede mandamentos a fim de que os eleitos os cumpram, mas para que os réprobos neles se enredem, para revelar a sua ira e sua misericórdia.
Lutero, Martinho. A epístola de São Paulo aos Romanos. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – Volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo/ Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posições 7411-7424.

É preciso ter em mente que Lutero escreveu essas palavras em 1515, quando ainda estava sob a influência do papado e não tinha nem mesmo escrito as 95 teses que provocaram a Reforma. O teólogo Ricardo Wieth, na introdução destas preleções de Lutero do original para o Português nas Obras Selecionadas, traz luz a esse período de Lutero, quando fez as preleções sobre romanos, registrada por seus alunos:

“Na preleção sobre Romanos, Lutero já demonstra um bom avanço na direção desta compreensão de “justiça de Deus”, embora ainda reproduza, consideravelmente, o vocabulário e as formas de ensino de seus mestres próximos e distantes”.

(Wieth, 2016. Introdução – A epístola de São Paulo aos Romanos. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – Volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo/ Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posição 6016)

Seus primeiros escritos sobre a predestinação não seguem seu pensamento posterior em relação ao tema, em sua obra “Da Vontade Cativa” está registrado que Lutero coloca na vontade humana o motivo que alguns se perdem e não são salvos, mesmo Deus querendo salvar a todos:

“Porque esse quer que todos os seres humanos sejam salvos, visto que vem a todos com a palavra de salvação; e a falha é da vontade (humana) que não o admite, como diz Mateus 23.37: Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, e tu não o quiseste!”

Lutero, Martinho. Da Vontade Cativa. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – Volume 4: Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo/ Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 1993. p. 102.

Com isso, Lutero nega a dupla predestinação e coloca o motivo da condenação na vontade humana, não em Deus ou em um “decreto de Deus”, Lutero tinha uma doutrina diferente da calvinista em relação à expiação. Ele disse certa vez:

“Eu acreditaria com alegria se eu fosse como São Pedro, São Paulo e outros piedosos e santos, mas eu sou muito e totalmente pecador. Sendo assim, quem sabe se fui eleito para a salvação?

Resposta: Observa as palavras [de João 3:16]. Rogo-te que determines como e de quem ele está falando: “Deus amou o mundo de tal maneira” e “para que todo aquele que nele crê”. Agora, a palavra “mundo” não significa só São Pedro e São Paulo, mas toda a raça humana, toda junta. E aqui não fica ninguém excluído. O Filho de Deus foi dado por todos. Todos deveriam crer, e todos os que creem não perecerão, etc. Toca em teu nariz, te suplico, para que determines se não és um ser humano (isto é, parte do mundo) e como qualquer outro homem pertences ao número dos que foram incluídos pela palavra “todos”.

– Martinho Lutero. WA 21, 409 f E 12, 365 – Sl 11, 1107. Apud Ewald Plass. What Luther Says – An Anthology – Volume 2. St. Louis – Missouri: Concordia Publishing House: 1959, pp. 608,609.

Em seu comentário sobre a carta de São Paulo aos Gálatas, Lutero também mostra que pensava bem diferente do que posteriormente foi chamada de “expiação limitada”, no calvinismo:

Pois Cristo, deveras, não é um algoz, mas o Propiciador pelos pecados de todo o mundo. Por isso, se és pecador, como todos nós o somos, com certeza, não ponhas a Cristo sobre um arco-íris como juiz, pois, nesse caso, serás aterrorizado e desesperarás.
Mas apreende a verdadeira definição dele, a saber, que Cristo, o Filho de Deus e da virgem, é uma pessoa que não aterroriza, não aflige, não condena a nós, pecadores, não exige de nós que prestemos contas da nossa má vida pregressa, mas é uma pessoa que tirou o pecado do mundo, crucificou-o e, em si mesmo, o extinguiu.
Aprende essa definição assiduamente, ocupa-te, principalmente, com o pronome “por nossos”, para que estas duas sílabas (nossos), uma vez cridas, também engulam e absorvam, depois, todo o teu pecado para que, enfim, saibas, com certeza, que Cristo não, apenas, tirou os pecados de alguns homens, mas, também, os teus e os de todo o mundo. A oferta foi feita pelos pecados de todo o mundo, embora nem todo o mundo o creia.
Sejam, pois, os teus pecados não meros pecados, mas os teus próprios pecados, isto é, crê que Cristo não foi entregue apenas pelos pecados dos outros, mas, também, pelos teus próprios. Segura isso com perseverança e jamais permitas que te arranquem dessa tão doce definição de Cristo…
Lutero, Martinho. Comentário à Epístola aos Gálatas. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – Volume 10. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ed. ULBRA, 2017. Edição do Kindle, posições 1026-1031

Vemos que Lutero não concordava com uma “expiação limitada”, como os calvinistas creem, mas que o sacrifício de Jesus foi por toda a humanidade. Porém ele não concordava com os arminianos, que dizem a vontade humana pode aceitar a salvação. Em seu Catecismo Menor, Lutero declara:

Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé. Assim também chama, congrega, ilumina e santifica toda a cristandade na terra, e em Jesus Cristo a conserva na verdadeira e única fé. Nesta cristandade perdoa a mim e a todos os crentes diária e abundantemente todos os pecados, e no dia derradeiro me ressuscitará a mim e a todos os mortos, e me dará a mim e a todos os crentes em Cristo a Vida Eterna.

Lutero, Martinho. Catecismo Menor de Lutero: http://catechism.cph.org/pt/o-credo-apostólico.html (Acesso em 20/05/2018)

Lutero continuou crendo na divina eleição, predestinação ou preordenação dos salvos, que Ele escolhe, elege e predestina quem será salvo, não é algo que nós buscamos ou colaboramos. Lutero diz:

Ora, o ser humano não pode humilhar-se completamente enquanto não souber que sua salvação em nada depende de suas forças, desígnios, esforços, vontade e obras, mas totalmente do arbítrio, desígnio, vontade e obra de um outro, a saber, tão-somente de Deus.

Martinho Lutero. Da Vontade Cativa. Obras Selecionadas de Martinho Lutero volume 4 – Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo: Editora Concórdia; Porto Alegre: Editora Concórdia, 1993, p. 46

Martinho Lutero afirmava categoricamente, como diz a Bíblia, que “há eleitos e réprobos, assim há vasos da honra e da ignomínia” (1993, p. 149). Só que, como vemos acima, isso não significa que ele acreditava em dupla predestinação. Ele deixava essa questão da eleição divina como um mistério. Os réprobos são condenados por sua própria rejeição a Deus, não por preordenação de Deus à morte eterna.

O autor luterano Robert Kolb (2017, p. 95) observa que “o entendimento de Lutero sobre a predestinação tinha a intenção apenas para reforçar a proclamação da segurança que vem da promessa de Deus recebida de várias maneiras pela sua Palavra”. Lutero cria na divina eleição, ou predestinação, apesar de crer na graça universal, que diz que Cristo morreu pelos pecados de toda a humanidade, como vemos acima. Em sua epístola aos gálatas, Lutero, se referindo ao ministério de Paulo, o trata como “predestinado”, eleito de Deus e que os “eleitos” aceitarão a mensagem (Lutero, 2017).

Lutero trabalha assim a consolação que a doutrina da divina eleição traz:

Agora, porém, que Deus tirou minha salvação do meu arbítrio e a incluiu no seu, e prometeu salvar-me não por meio de minha obra e corrida, mas por sua graça e misericórdia, estou seguro e certo que ele é fiel e que não me mentirá, e que, além disso, é forte e poderoso de modo que nenhum demônio, nenhuma adversidade poderá vencê-lo ou arrebatar-me dele. Ele diz: ‘Ninguém os arrebatará de minha mão, porque o Pai, que os deu, é maior do que todos’ [Jo 10.28s].

Martinho Lutero. Da Vontade Cativa. Obras Selecionadas de Martinho Lutero volume 4 – Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo: Editora Concórdia; Porto Alegre: Editora Concórdia, 1993, p. 212.

Só que isso também não está de acordo de com a doutrina calvinista da “perseverança dos santos”, como dizem muitos calvinistas. Somos guardados sim por Deus, mas existe também a apostasia que a bíblia fala, quando crentes e salvos em Jesus Cristo perdem sua salvação pela sua própria descrença, conforme você verá mais para frente. Então como Lutero resolvia a questão da falha humana em sua vontade que o leva à perdição com a predestinação? Ele não resolvia. Sobre isso, Lutero declara:

“A disputa sobre a eleição deve ser evitada completamente… Eu esqueço tudo sobre Cristo e Deus quando eu me encontro nestes pensamentos e de fato chego ao ponto de imaginar que Deus é desonesto. Nós devemos ficar na Palavra, na qual Deus é revelado para nós e a salvação é oferecida, se nós cremos nele. Mas ao pensar sobre predestinação, nós esquecemos de Deus… Contudo, em Cristo estão escondidos todos os tesouros (Cl 2:3); fora dele tudo está trancafiado. Então, nós deveríamos simplesmente recusar debater sobre a eleição. Tal disputa é tão irritante para Deus que ele instruiu o Batismo, a Palavra pregada, e a Ceia do Senhor para agir contra a tentação de se engajar nisto. Nestas coisas vamos persistir e constantemente dizer: eu sou batizado e acredito em Jesus. Eu não me importo nem um pouco com as disputas sobre a predestinação.”

– Martinho Lutero. Apud Ewald Plass. What Luther Says – An Anthology, Volume 2. St. Louis – Missouri: Concordia Publishing House: 1959, p. 456. Apud Don Matzat. Martin Luther and the Doctrine of Predestination. Issues, Etc. Journal – Vol. 1. No. 8. October 1996. Disponível em https://www.issuesetcarchive.org/issues_site/resource/journals/v1n8.htm. Acesso em 20/05/2018.

Em suas palestras sobre Gênesis, Lutero também declara:

Por isso deveríamos abster-nos de discussões a respeito da predestinação e de assuntos semelhantes, pois elas estão repletas de perigos e [levam à] ruína, porque procuram descobrir a vontade e os desígnios ocultos de Deus fora da Palavra, querem investigar e sondar com curiosidade demasiada por que Deus se revelou de uma maneira ou outra e por que ele se empenha tanto para nos persuadir a crer.

Lutero, Martinho. Preleções sobre Gênesis. In: Obras Selecionadas / Martinho Lutero– Interpretação do Antigo Testamento – Textos Selecionados da Preleção sobre Gênesis. São Leopoldo/ Porto Alegre/ Canoas: Sinodal/ Concórdia/ Ed. ULBRA, 2014. v. 12. Edição do Kindle, posições 9408 – 9412)

Ainda sobre a eterna eleição, em seu debate com Erasmo, Lutero pontua:

Nós dizemos, como já dissemos antes, que não se deve debater acerca daquela secreta vontade da majestade; e a temeridade humana, que com contínua perversidade sempre investe e atenta contra ela pondo de lado as coisas necessárias, deve ser dissuadida disso e retirada, a fim de que não se ocupe em escrutar aqueles segredos da majestade, a qual não se pode atingir, visto que habita na luz inacessível conforme o testemunho de Paulo (1 Tm 6.16). Que se ocupe, ao contrário, com o Deus encarnado ou (como diz Paulo) com Jesus crucificado, no qual estão todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento, porém abscônditos [Cl 2.3]; pois por meio deste ela possui abundantemente o que deve e o que não deve saber.

Lutero, Martinho. Da Vontade Cativa. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero – Volume 4: Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo/ Porto Alegre: Sinodal/ Concórdia, 1993, p. 105.

Perda da salvação

Outro ponto de discórdia entre Lutero e os calvinistas e arminianos está na perda salvação. Os calvinistas defendem a “perseverança dos santos” dizendo que o cristão verdadeiro não perde a salvação. Como dito acima, este não é o pensamento de Lutero.

Lutero pensava assim:

Por outro lado, é possível que venham alguns espíritos sectários […] e sustentem a opinião seguinte: Todos aqueles que em algum momento receberam o Espírito ou o perdão dos pecados, ou que em algum momento se tornaram crentes, esses, caso pequem depois disso, mesmo assim permanecerão na fé e tal pecado não lhes fará mal […] Dizem, além disso, que aquele que peca depois de receber a fé e o Espírito nunca teve de modo verdadeiros o Espírito e a fé. Já me apareceram muitas dessas criaturas insanas, e temo que esse demônio ainda esteja alojado em alguns.
LUTERO, Martinho. Os Artigos de Esmalcalde, III, 42. In: LIVRO DE CONCÓRDIA: as confissões da Igreja Evangélica Luterana. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Comissão Interluterana de Literatura, 2021, pp. 352-353
Estas palavras: “Da graça decaístes” não devem ser consideradas fria e negligentemente, pois são muito enfáticas. Todo aquele que decai da graça perde, simplesmente, a expiação, a remissão dos pecados, a justiça, a liberdade, a vida, etc., que Cristo adquiriu para nós com sua morte e ressurreição. Por outro lado, obtém, em lugar delas, a ira e o juízo de Deus, o pecado, a morte, a escravidão do diabo bem como a condenação eterna. E essa passagem nos fortalece poderosamente e confirma a nossa doutrina a respeito da fé ou do artigo da justificação…
– Martinho Lutero. Comentário à Epístola aos Gálatas. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero v. 10 [e-book]. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ed. ULBRA, 2017. v. 10. Edição do Kindle, posições 9091-9099

É importante explicar que aqui Lutero não está falando de todo pecado, como se perdêssemos a salvação a cada pecado cometido, como ensinam os sinergistas, mas do pecado sem perdão, a blasfêmia contra o Espírito Santo, que é a total falta de fé em Cristo.

Salvação mediada

Tanto calvinistas como arminianos creem na salvação imediata, ou seja, sem meios, mas feita diretamente por Deus, seja pela doutrina da eleição, onde o eleito sabe que é eleito pelo que ele sente de fé em Deus e como isso se reflete em suas obras; seja pelo sinergismo, que dá garantia ao salvo pela decisão que ele tem por Deus, que se reflete em boas obras também. Já Lutero cria na salvação por meios, ou seja, Palavra e Sacramentos são os meios pelos quais Deus trata conosco e nos salva. Para Lutero, a garantia da salvação está fora de nós, pelos meios que Jesus instituiu, Palavra e Sacramentos e são estes meios da graça, Palavra e sacramentos, que são a evidência e nos dão a certeza de nossa salvação, não nossas obras. Lutero diz assim:

Por isso devemos e temos de perseverar nisso que Deus não quer tratar com nós homens de outra maneira senão mediante a sua palavra externa e pelos sacramentos. Tudo o que se decanta a respeito do Espírito sem essa Palavra e sacramento é do diabo.
– Martinho Lutero
Artigos de Esmalcalde, Parte III, artigo VII, seção 10. In: LIVRO DE CONCÓRDIA. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2006, p. 337

Conclusão

Os arminianos e calvinistas se afastaram do ensino de Lutero sobre a predestinação. É comum que ambos os grupos se apropriem de Lutero e digam que ele acreditava como eles, porém vemos neste pequeno trabalho que há uma diferença entre o que Lutero cria e o desenvolvimento desses dois grupos em relação à predestinação. Lutero acreditava que Deus somente é autor e consumador da salvação, ele era monergista (monergismo = obra de um só), mas, ainda assim, acreditava que o sacrifício de Jesus foi por toda a humanidade, porém somente os que creem em Cristo recebem os benefícios deste sacrifício e somente creem em Cristo porque Deus os faz crer, a fé não é uma obra que o ser humano pode se vangloriar de ter, mas é um dom (presente) de Deus, que pode ser rejeitado, mas a graça não capacita o ser humano a decidir se quer ou não a salvação, como diz a “graça preveniente” do arminianismo, a pessoa aceita fé porque Deus a faz aceitar, muda a vontade da pessoa. Só que o porquê de uns receberem a salvação e outros não é um grande mistério, Lutero não usava a lógica para explicar isso.

Calvinismo e arminianismo são tentativas de resolver o mistério da predestinação através da lógica. Lutero não tinha o mesmo entendimento que calvinistas e arminianos tiveram depois da morte dele (calvinismo e arminianismo vieram depois de Lutero, então Lutero e os luteranos não podem ser chamados nem de calvinistas, nem de arminianos, o luteranismo é um pensamento anterior a estas duas vertentes). A Bíblia diz que existe a predestinação e ela não é pela presciência, mas pela vontade e arbítrio de Deus, ela diz que não tem como colaborarmos com Deus em nossa salvação, então a salvação é monergista, obra de um só, feita toda por Deus. A Bíblia também diz que quem se perde é por rejeitar a fé, ou por cair da fé, não por um decreto de Deus para a reprovação das pessoas. Então Lutero não tentava conciliar essas verdades pela lógica, como fazem o calvinismo e o arminianismo, mas deixava esses paradoxos intactos, somente de acordo com a revelação da Bíblia, a palavra de Deus, e nós, luteranos confessionais, seguimos a mesma linha de pensamento, de não resolver a questão da predestinação pela lógica, mas manter o paradoxo bíblico.

Lutero pede que se evite debater sobre a predestinação, pois este assunto está ligado a “Deus abscônditos” (Deus oculto), mas nos preocuparmos com o que foi revelado. Com isso, vemos que a doutrina da predestinação em Lutero é sobre Deus salvando soberanamente pecadores eleitos, mas, mesmo assim, Deus quer todos sejam salvos. Por isso não cabe a nós julgar, avaliar ou definir quem deve ser salvo ou não, usando a predestinação ou presciência divina como argumento para isso.

Se quiser conhecer a diferença na predestinação e outros assuntos entre luteranos e demais evangélicos, seguem dois artigos explicativos aqui do blog, clique nos títulos em azul e acesse:

Diferenças entre Luteranos e demais Evangélicos na Predestinação

A Identidade Luterana Frente a Outras Teologias (calvinismo e arminianismo)

Dupla Predestinação

Bibliografia

Calvino, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. Edição eletrônica, 2006. vol. 3. Edição do Kindle.

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Lutero, Martinho. Preleções sobre Gênesis. In: Obras Selecionadas / Martinho Lutero– Interpretação do Antigo Testamento – Textos Selecionados da Preleção sobre Gênesis. São Leopoldo/ Porto Alegre/ Canoas: Sinodal/ Concórdia/ Ed. ULBRA, 2014. v. 12. Edição do Kindle,

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