Frase de um famoso pregador de leis, regras, condenação e inferno que ilustra essas pregações famosas na internet.

Um dos fundamentos da teologia luterana, principalmente a confessional, da qual sou adepto, é a correta distinção entre Lei e Evangelho. Essa teologia de Lei e Evangelho chegou a ser adotada pelos primeiros calvinistas, como o próprio Calvino e Theodore Beza, de forma adaptada, não da mesma forma que os luteranos sempre ensinaram, mas era uma pauta no meio calvinista. Hoje a teologia de distinguir Lei e Evangelho praticamente não é mais usada no meio calvinista, e não estou aqui para dizer se estão certos ou errados em terem abandonado esta teologia, mas, por ter caído em desuso, fica mais difícil para nós, luteranos, falar desse ponto fundamental da nossa teologia, sem que calvinistas mais liberais nos chamem de fundamentalistas por pregarmos a Lei, e os calvinistas mais conservadores nos chamem de liberais, por darmos mais ênfase ao evangelho.

Não é Lei sendo a Torá, no Antigo Testamento; nem o Evangelho os escritos dos evangelistas, no Novo Testamento. São duas mensagens diferentes: a Lei, por toda a Bíblia, fala do que temos que fazer ou não fazer; já o Evangelho, por toda a Bíblia, fala do que Deus fez, faz e fará por nós. Não se pode misturar essas duas mensagens. Um teólogo luterano do século 19, C.F.W. Walther, fez uma boa apresentação dessa nossa teologia fundamental, e ele diz assim:

{Apontar obras, atitudes e virtudes como prova de conversão verdadeira é a pior confusão entre lei e evangelho que pode existir.}

Esta confusão tão grosseira entre lei e evangelho é o mais grave erro dos racionalistas. A essência de sua religião consiste em ensinar aos homens que eles se tornam novas criaturas quando abandonam seus vícios e vivem uma vida cheia de virtudes. Contrário a isso, a palavra de Deus nos ensina que, primeiramente, devemos tornar-nos novas criaturas, para, somente então, abandonar estes e aqueles pecados, passando à prática de boas obras. [1]

Então uma pregação pode ser muito perigosa, tanto legalista (cheia de leis e regras) como antinomista (contra a Lei de Deus), se pregada de forma errada. Walther observa:

Suponhamos, no entanto, que alguém pudesse dizer fielmente: “Meu sermão não continha nenhuma heresia.” É possível, porém, que todo o seu sermão tenha sido falso… Teólogo ortodoxo é somente aquele que, além de outros requisitos necessários, sabe diferenciar corretamente Lei de Evangelho. Esse é o critério decisivo para avaliar-se um bom sermão. O valor do sermão não consiste apenas em que cada afirmação é tirada da Palavra de Deus e está de acordo com ela, mas também no poder-se afirmar que Lei e Evangelho estão sendo diferenciados corretamente. [2]

Dito isso, eu sempre recebo mensagens de pessoas que assistem os vídeos do Paul Washer e ficam desesperadas, achando que estão condenadas por causa de regras humanas, como ouvir música secular, pintar o cabelo, beber álcool etc.

E, como o Paul Washer quase nunca prega o Evangelho, só prega Lei, elas não ouvem que são pecadoras sim, não por essas coisas, que não são pecado, mas elas cometem pecados sim e, mesmo que essas coisas permitidas aos cristãos numa boa fossem pecado, a mensagem de Jesus é de salvação, é a graça do Pai, é o amor do Espírito Santo. Todo pecador tem graça, perdão e salvação em Cristo.

Não faz sentido esse trabalho desses pregadores da condenação e do inferno. O trabalho do Paul Washer e similares é um desserviço ao meio cristão, deixando as pessoas desesperadas e sem saber que há perdão e salvação para elas. Paul Washer até fala de salvação e graça, mas pouquíssimo, não dá ênfase quase nenhuma nisso, é só uma nota de rodapé nas pregações dele, a ênfase maior é na condenação, nas leis e regras, não no perdão e na salvação.

Vejamos o John Piper, por exemplo. Ele inventa regras que não estão na Bíblia, como dizer que mulheres não podem exercer autoridade nenhuma sobre homens; uma vez ele foi embora quando, num evento, uma mulher começou a pregar (não falo aqui de ministério feminino, mas de exagerar e dizer que mulher não pode ter voz nenhuma entre homens, o que é um erro gravíssimo dele); ele também proíbe de assistir certos conteúdos da TV, como a série Game of Thrones. Ou seja, ele é, também, um legalista, pois inventa regras que não estão na Bíblia.

Só que nunca vi ninguém desesperado com medo de Deus ao ver as pregações dele. Ele prega leis e regras, mas lembra que existe também o Evangelho. Ele sabe, dentro das limitações da teologia puritana dele, distinguir Lei e Evangelho de uma forma um pouco mais correta. Ele sabe trovejar contra o pecado, inclusive contra coisas que não são pecado, mas sabe consolar o pecador e levá-lo ao amor de Cristo e à graça do Pai.

É fundamental pregar sim uma vida correta diante de Deus e do próximo, isso é Lei de Deus: amar a Deus e o próximo, o que significa agir corretamente com Deus e as pessoas; mas não adianta usar a Lei de Deus, que está na Bíblia, ou mesmo leis humanas, para condenar as pessoas, mas “esquecer” de falar do Evangelho, ou colocar o Evangelho apenas como uma nota curta de rodapé, um trecho pequeno da pregação, dar pouca ou nenhuma importância ao perdão dos pecadores em Cristo e à graça de Deus.

Pregar exclusivamente, ou primordialmente, Lei e condenação não ajuda ninguém a nada. O que a pessoa vai fazer ao saber que está condenada? Ela não pode fazer nada. Não há nada que possamos fazer para escapar da condenação. Por isso é fundamental também pregar o Evangelho, o perdão, a graça, a salvação, ou a pregação vai fazer mais mal do que bem para as pessoas. Como diz Lutero:

toma cuidado para não transformares Cristo num Moisés, nem fazeres do Evangelho uma lei ou cartilha, como tem acontecido. [3]

Já deixo claro que não conheço o Paul Washer como pessoa, não estou falando que ele é mal-intencionado, uma pessoa ruim, nada disso, por favor, seja justo ao interpretar meu texto. Eu não posso falar do coração dele. Até acredito sim que ele é um cristão temente a Deus, não o considero um herege, falso cristão, não penso mal da pessoa dele. O que eu critico aqui, e acho um desserviço, é o trabalho dele de pregar leis, regras e condenação como temas principais de suas pregações, a teologia dele, a linha puritana que ele segue. Sobre a pessoa dele, seu relacionamento com Deus e suas intenções, não cabe a mim fazer textão sobre isso, pois não o conheço pessoalmente; minha avaliação aqui é de sua teologia e de outros que seguem a mesma linha de pregação que ele.

Minha intenção com esse texto é mostrar para as pessoas angustiadas pelas pregações de leis, regras, condenação e inferno que há alternativa, que há teologia cristã bíblica e ortodoxa que preza pela salvação, pelo perdão de pecados, pela ênfase maior no Evangelho e menor na Lei, diferente dessas teologias de condenação.

PS. Falei a mesma coisa no Twitter e alguns fãs do Paul Washer ficaram lá comentando e compartilhando cheios de ódio por mim. Tive até que bloquear alguns, de tão agressivos que ficaram comigo, por eu discordar dele, por ter uma teologia diferente da dele e achar a pregação dele ruim, um desserviço. Aí eu me pergunto: os fãs dessa linha puritana de pregação da leis, regras e condenação listam tantos pecados para mandar as pessoas para o inferno, mas o ódio não é um pecado também? 🤔

Citações:

1. Carl Ferdinand Wilhelm Walther. Lei e Evangelho. Versão condensada de “A Correta Distinção entre Lei e Evangelho”. Porto Alegre: Editora Concórdia,2005. Conteúdo convertido para Edição do Kindle, posições 1276-1290

2. Carl Ferdinand Wilhelm Walther. A Correta Distinção entre Lei e Evangelho. 1a ed. Porto Alegre: Concórdia, 2005, p. 45

3. Martinho Lutero. Prefácio ao Novo Testamento. In: Obras Selecionadas de Martinho Lutero [on-line] volume 8: Interpretação Bíblica, Princípios – 3. ed. atual. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 2016. Edição do Kindle, posição 2590