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Esses últimos tempos eu tenho sido confrontado por muitos jovens cristãos de Direita, quase na totalidade calvinistas, que tentam me convencer a aderir a seus novos posicionamentos de fé que colocam a ideologia política de Direita como sendo a única viável ao “verdadeiro cristão” (termo esse que todos usaram comigo) e que devo me “converter” à Direita para ser de verdade um cristão.

Ou seja, para eles, a regeneração que recebi no santo batismo, sem política, não foi suficiente; a obra de Jesus em mim parece que para eles não foi consumada na cruz, quando a Direita Conservadora, Liberal, ou qualquer outra visão política de hoje em dia nem sequer existia. Os pais da Igreja, cristãos medievais, reformadores, todos os cristãos pela história nada falaram sobre ser de Direita, Esquerda, ou algo que pareça com qualquer política de hoje em dia para ser um verdadeiro cristão, mas tinham visões políticas de suas épocas, nada a ver com a Direita de hoje, e com elas se esforçavam para servir o próximo em amor a Deus.

Eu só vejo no bom testemunho das Escrituras e da História da Igreja a justificação pela fé, sem política, e cristãos pecadores como os de Direita e de Esquerda hoje, que confiavam em Jesus, não na política, para sua justificação diante de Deus. Os exageros e teologias políticas que aconteceram na História da Igreja ficam no mau testemunho, temos aí as Cruzadas, a Igreja Oficial do Império Romano, a teologia medieval das indulgências, a Inquisição, o ascetismo, as teocracias puritanas no Reino Unido e na América do Norte, os genocídios indígenas, a escravidão negra, a segregação estadunidense, o Apartheid, o nazismo, o regime comunista soviético, todos acontecimentos históricos terríveis que tiveram “aval Teológico” de cristãos que trocaram a esperança celestial por uma esperança política deste mundo e criaram teologias que justificassem suas ideologias políticas.

E esses calvinistas mais radicais, na paixão deles pela Direita, agora me aparecem com essa de que preciso aderir a uma visão política para ser justificado como um “verdadeiro cristão”, e na minha recusa a ser de Direita já me acusam injusta, mentirosa e precipitadamente de marxista, socialista, comunista, etc, coisas que não sou, só por discordar do “plano de redenção” deles que diz que o verdadeiro cristão não pode ser outra coisa que não de Direita.

Eu sou centroesquerda, a favor da social democracia para o Brasil, mas vejo a política como algo dinâmico e sem respostas eternas ou absolutas, eu creio nesse modelo para o nosso país, para outros eu até vejo outros modelos como melhor aplicáveis, também não acredito que o modelo político que eu sou adepto hoje seja um modelo para ser usado para sempre; a política, na minha opinião, deve ser dinâmica e atender a todos com justiça e igualdade, mesmo que varie seu posicionamento conforme a necessidade; só que mesmo se eu fosse marxista, comunista, socialista e bla bla bla, biblicamente isso é adiáforo, ou seja, um tema livre. As escrituras nos dão como objetivo (3° uso da Lei) e limite (1° uso da Lei) o amor pelo próximo, e nisso devemos agir como cristãos cheios de amor pelo nosso Deus, que nos abençoa com generosidade, e por isso devemos ser generosos com nosso próximo também.

É importante que eu diga também, contrariando as acusações cegas dos radicais de Direita, que eu reconheço que há sim coisas condenáveis biblicamente no materialismo histórico de Marx, no socialismo, no comunismo, mas eu também reconheço, e eles não costumam reconhecer, que há também coisas condenáveis biblicamente no liberalismo, no conservadorismo, no capitalismo da Direita.. E nisso inventam um monte de desculpas e silogismos que servem como boas desculpas na mente destes mais fanáticos pela Direita, por isso não conseguem reconhecer que os sistemas que eles aderem como a uma religião são meros sistemas humanos e passíveis de pecado como tudo que é humano.

Segundo a Bíblia ensina, o cristão tem que saber filtrar tudo e reter o que é bom, com liberdade para servir o próximo da melhor forma possível, não deve ser coagido com teologias de domínio, com desculpas, ou com heresias dominionistas disfarçadas de “cosmovisão cristã”, ou “Lei de Deus”.

Com esse discurso cego deles de que tem que ser de Direita para ser cristão, parece, então, que não existiu “verdadeiro cristão” até este momento da história que temos a Direita para nos “salvar” da “Esquerda do capeta” – E eles jogam tudo que não está dentro do que eles aprovam na Esquerda, não sabem enxergar as zilhões de possibilidades fora do código binário “esquerda e direita” de suas mentes teleguiadas.

Isso tá muito irritante pro meu lado. Já faz anos que sofro com o legalismo no meio evangélico, antes era com música, com roupa, me enchiam o saco por curtir Heavy Metal, ter brincos, tatuagem, etc, agora o legalismo é com política, querendo me enfiar goela abaixo essas formas de Direita que eles abraçam como um ídolo, enchendo o meu santo saco e me faltando com o devido respeito e se comportando como radicais, querendo regulamentar minhas decisões e opiniões particulares sobre política, onde as Escrituras me dão liberdade.. E querer mandar no que eu devo crer ou decidir pessoalmente é uma que coisa acaba com a minha frágil paciência, ainda mais usando o nome de Deus e querendo se interferir em meu relacionamento com Ele.

Eu creio que essa moda legalista vai passar, já vivi outras, conheço bem o meio evangélico, é cultura do meio evangélico sempre ter em voga um legalismo e ficar se justificando por obras, com uma galera se autoafirmando como os “santarrões” e condenando as pessoas que acham “satânicas” ou “incompatíveis com a fé cristã”, infelizmente o farisaísmo de fechar a porta do Reino para quem não se encaixa nas regras que eles inventam como corbã é comum nesse meio evangélico, salvo exceções, tanto gospel como calvinista, eu também era assim, sei do que estou falando, e me arrependo, mas logo essa moda passa e novas modas virão. Mas eu confesso que minha tolerância com gente que quer me dizer como pensar, o que decidir, qual opinião ter e o que fazer na minha vida pessoal é bem limitada, por isso criei essa conversa fictícia aqui para botar para fora essa irritação.

Eu já começo reiterando meu pedido de perdão por ter sido extremista e praticado maldades quando eu era calvinista, hoje me irrito com aquilo que eu era, mas eu era um pé no saco com outro tema – predestinação. Quem me conhece há mais tempo sabe que eu fui calvinista por cerca de 8 anos e eu era muito chato, arrogante e agressivo com quem eu discordava. Eu cheguei a ir na Marcha para Jesus, evento neopentecostal aqui de São Paulo, protestar contra a realização do evento por discordar da ideologia deles. E eu me arrependo amargamente de ter sido uma pessoa assim. Pedi e peço perdão a todos que magoei com aquela agressividade toda.

Por isso eu tento não ser tão duro com os calvinistas que hoje querem me convencer por meio de silogismos e tentam me coagir a concordar com seus posicionamentos políticos, porque eu fazia igual a eles quando a moda era teologia antineopentecostal. Eu não sou melhor do que eles. Também não quero generalizar. Conheço calvinistas moderados, calvinistas de Direita que sabem colocar a política abaixo da fé, e cristãos de Esquerda que são tão ou mais chatos que os que estou representando no personagem desta conversa fictícia abaixo, então não estou querendo generalizar, eu sei que o calvinismo é um movimento diverso e cheio de gente muito legal, mas os que são chatos e legalistas conseguem me tirar do sério ultimamente. Acho que é porque fui um calvinista chato e legalista e fico desesperado em ver alguém nessa condição, mas eu não posso coagir ninguém a nada. Eles devem receber a liberdade pela fé, assim como eu recebi também. Eu só posso lamentar, orar e, se for o caso, cortar os sem noção que pegam pesado comigo e me faltam com o respeito, como te. acontecido numa frequência bem desagradável esses dias

Vou dividir assim. O meu sobrenome, Surian, para as minhas falas, e vou colocar o nome do personagem fictício de John Boring.

Sem mais delongas, vamos à conversa com o chatonildo:

John Boring
– E aí, Surian. Nossa, você ter pedido desculpas de ter sido um babaca de ficar enfiando calvinismo, quando você era calvinista, goela abaixo dos outros e maltratar os não calvinistas foi inspirador. Eu também já estava caminhando no sentido que preciso ser menos arrogante e agir com mais amor com meu próximo. O cristão é cristão pela fé somente, não pelo calvinismo. O cristão é cristão pela fé.

Surian
– Que legal, irmão. Tamo junto. Eu hoje sou luterano, mas como o cristão é cristão somente pela fé em Jesus, como as Escrituras ensinam, acredito que nossa comunhão em Jesus está em grau maior que essas diferenças elementares. Desde que a diferença não seja no principal, ou seja, Trindade, Graça, Fé e Escrituras, estamos em comunhão no mesmo caminho.

“Pouco tempo depois.. O mesmo volta..”

John Boring
– E aí, Surian. Vi que suas postagens defendem a Esquerda. Como você se diz cristão e defende coisas da Esquerda? O cristão verdadeiro é de Direita!!

Surian
– Cara, o cristão de verdade é livre nesses adiáforos. Ele pode ser de Direita, Esquerda, ou nenhuma dessas coisas, desde que adapte suas ideologias políticas à Palavra de Deus e não negue ou relativize seus ensinos principais de amor a Deus e ao próximo em nome da política.

Eu sou centro-esquerda, social democrata. Ou seja, acredito na liberdade, propriedade, democracia e também na responsabilidade da sociedade com os seus semelhantes, principalmente com os menos avantajados, e não vejo as pessoas voluntariamente responsáveis, fraternas, solidárias e conscientes da necessidade do próximo, antes são individualistas, egoístas e sempre buscando vantagens para si mesmos, não para o coletivo.

Nossa sociedade é egoísta, racista, machista, corrupta e individualista. Só o esforço das pessoas em negarem essas coisas que são diariamente presentes na nossa sociedade já prova que nossa sociedade é doente e não quer se cuidar e melhorar por si mesma. Por isso acredito que essa responsabilidade deve ser fiscalizada e efetivada pelo Estado.

É como no assento obrigatório aos portadores de necessidades especiais. Se não houver uma lei que garanta esses assentos reservados, as pessoas não cedem voluntariamente o lugar para grávidas, idosos e deficientes físicos. Alguns fazem isso voluntariamente, mas a maioria não, a maioria o faz por coerção, pq é obrigatório, faz com cara feia, xingando, a contragosto, fora que muitos (e muitos mesmo) nem por coerção cedem o lugar. Eu tenho uma deficiência e problemas de mobilidade que as vezes me fazem precisar de bengala, eu já apanhei por pedir lugar. Todos os meus amigos deficientes tb já apanharam. Isso mesmo, APANHAR. Outros fingem que estão dormindo, outros ficam dando sermão de falso moralismo. Enfim, se não houver lei e interferência do Estado, certos direitos e oportunidades não acontecem, pq a humanidade é caída no pecado. Assim também é a Lei de Cotas. Se não houver interferência estatal, a maioria dos pobres (e os negros são na imensa maioria pobres, por isso devem ser contemplados de maneira especial) não vão ter oportunidades acadêmicas. Eles não têm 2 mil reais por mês para pagar faculdade. Não têm condições de pagar cursinhos caros para vencer na “meritocracia” injusta do nosso sistema educacional. Eles precisam ter oportunidades garantidas pelo Estado. Eu não consigo nem imaginar um branco rico que passou num vestibular de uma Universidade Pública abrindo mão de sua vaga para um negro pobre que ficou mais atrás entrar no lugar dele. Ou seja, não existe voluntariado, não existe bom senso.

As coisas não funcionam assim no Brasil. Então não sou de Direita, não acredito no “cada um por si”, mas também não quero o Estado regulando minha vida no que eu devo acreditar, o que eu devo comer, qual a opinião que eu devo ter sobre sexualidade, religião, etc, como acontece em ditaduras socialistas, não concordo com o Estado totalitário, creio num meio termo, mas que tenha responsabilidade com a sociedade, provendo serviços públicos nas áreas de necessidades e direitos humanos e dando oportunidade para todos participarem desses serviços e direitos.

John Boring
– Olha, Surian, eu não concordo com você. Vejo as coisas de uma forma bem diferente sobre isso.

Surian
– Tudo bem. Você tem direito de discordar de mim e pensar de forma diferente. Nossa fé deve estar acima das diferenças sobre assuntos secundários. E a política deste mundo não é regulamentada pela Palavra de Deus, somos livres para pensar da melhor dentro disso, desde que seja para promover o bem geral e frear o mal (Rom 13).

John Boring
– Não, Surian! Você não pode pensar assim. Esses valores são de Esquerda, é marxismo cultural. O verdadeiro cristão tem que ser de Direita, pq só a Direita defende os valores cristãos.

Surian
– Puxa, cara, o que aconteceu com o “ser cristão de verdade é apenas pela fé”?
Bom, vou aproveitar que você não existe e isso aqui é só um textão de internet e vou deixar um pouco gentileza de lado e falar logo o que penso dessa ideia absurda que o cristão tem que pertencer a uma ideologia política para pertencer verdadeiramente a Cristo (ser cristão de verdade). Se você fosse real, eu pegaria mais leve e tentaria a paz em primeiro lugar, mas como você não existe, é só um personagem fictício sem nome, baseado em fatos reais, você vai “ouvir” tudo que eu penso desse absurdo que de hoje em dia no meio evangélico gospel/reformado (que estão praticamente a mesma coisa ultimamente).

Por que você se desviou assim do Caminho da fé e abraçou esse caminho político para ser um verdadeiro cristão?? Você só trocou a arrogância teológica por uma arrogância política e sua pregação ainda continua Legalista e idólatra!

Não! A Bíblia não me ordena ser de Direita, nem de Esquerda, ela põe todas as nossas ações como imundas e nossas justiças como trapo de imundícia (Is 64.6), então não venha me exaltar um modelo político como sendo o melhor para o cristão não pq isso é idolatria antibíblica, nenhuma política deve ser demonizada por ter defeitos, nem exaltada por ter qualidades. Somos livres para escolher o que achamos melhor aplicável em nossas sociedades, seja um lado, o outro lado, ou o centro, ou fora de tudo. Tanto faz. E não é certo você julgar a fé das pessoas por política. Política está no campo dos adiáforos. Não existe um modelo político “cristão”! Todos caímos! Todos produzimos coisas pecaminosas!! Não me venha com essa que eu preciso de alguma obra para ser um verdadeiro cristão. O que justifica eu ser um cristão é a fé!! Essa fé eu recebi de graça por Jesus, não teve nada a ver com política!! Eu não aceito sua idolatria, nem seu legalismo!! Se você quer carregar fardos e leis que Jesus não determinou, que carregue, mas não venha impor seu legalismo sobre mim!

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Deixo aqui uma reflexão sobre o cristão e o governo do Sumário da Doutrina Cristã.

Origem. O poder e autoridade de todo governo têm sua origem em Deus. “Não autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas ” (Rm 13.1-2; Pv 8.15; Dn 2.21; Jr 27.5-7). É da vontade de Deus que haja governo entre os seres humanos. A anarquia é contraria à sua vontade. Esse poder primariamente não está investido numa pessoa, família ou classe particular, mas no povo.

Forma. A forma de governo é determinada pelos seres humanos. Israel teve forma teocrática de governo até os dias de Samuel, mas, quando o povo pediu um rei, Deus atendeu seu pedido (1 Sm 8). A Bíblia fala dos direitos e deveres do governo, mas em parte nenhuma advoga qualquer forma particular. Pode ser, por isso, Monarquia absoluta ou limitada, oligarquia ou democracia, ou qualquer outra forma que o povo escolha. A Bíblia também não nos diz de que maneira o poder do governo deve ser conferido, se hereditariamente ou por designação, ou através de eleição. E o fato de o controle do governo ser obtido através da força, pela fraude, por usurpação, bem como o fato de os homens no ofício serem ímpios e não religiosos não invalidam o poder e a autoridade do próprio governo. A consciência dos cristãos não está presa a qualquer tipo especial de governo, mas os cristãos devem considerar como ordenação de Deus toda forma que realmente possui e exerce o poder e autoridade do governo.
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Limite de poder. O governo civil controla, em certa medida, a conduta exterior da pessoa já que ela afeta outros homens ou o bem-estar público. Olha o indivíduo em relação à sociedade. Contudo, há certas questões pessoais e particulares sobre as quais o governo não tem jurisdição. A principal delas é a religião de alguém, ou sua relação com Deus. Sendo poder temporal, o governo civil não se ocupa com o bem-estar espiritual dos cidadãos e não tem o direito de ditar-lhes a quem devem adorar e o que devem crer. A cura de almas não é entregue ao governo civil. O governo civil não trata com os seres humanos na esfera espiritual, mas na secular, sendo, por isso, guiado em seu trabalho pela razão, não pela Escritura. “Pois a administração política trata de coisas diferentes das do Evangelho. O magistrado defende não as mentes, porém os corpos e as coisas corpóreas contra manifestas injustiças, e reprime os homens coma espada e penas temporais” (Confissão de Augsburgo, Art XXVIII, 11, Livro de Concórdia).

O governo pode permitir o que Deus proíbe e proibir o que Deus permite, mas não pode ordenar o que proíbe, e proibir o que Deus ordena. Se o faz, devemos obedecer antes a Deus do que as pessoas (At 5.29)

– Edward Koehler, Sumário da Doutrina Cristã, cap 45 – Governo Civil, ed. Concórdia.